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A história faz-se (ou da prática actual dos profissionais de história).
Depois de Abril de 1974
(…) Fazer História exige um duplo esforço: o da informação e o da
teoria. A informação nunca é bastante. Mas informar-se não significa aceitar
como verídico todo o rol de informações em segunda mão, baseadas muitas no
simples ouvir dizer, outras produto de imaginações delirantes. A Idade Média
constitui nesse aspecto um alfobre de informações deste género. É necessário ir
às fontes, aos documentos, aos escritos da época, à literatura da época, aos
monumentos, aos restos, aos vestígios. Por outro lado e noutra direcção, o
investimento na teoria não significa que se tenha de navegar num mar cavado de
abstracção, sem o porto dos factos. De tal modo que alguns, quando tocam o
fundo, já inteiramente submersos, julgam ainda que estão a alcançar as
Índias... Falámos, e poderíamos continuar largamente, nos aspectos negativos,
mas quantos trabalhos individuais ou de grupo Se escreveram nestes anos que
mestres não desdenhariam de assinar? A História faz-se, leva consigo a marca do
produtor-produzido: não só a do seu talento (a ele e a quem mais o deve?), não
só a da técnica (quase totalmente herança colectiva), mas a dos limites da
matéria-prima e a do horizonte social do seu grupo e do seu tempo.
Para a análise do conteúdo do vocábulo história
História real e História teoria
O vocábulo história recobre, antes de mais, dois conteúdos bem
diferentes: designa os acontecimentos vividos, a duração concreta, as lutas
reais Homem-Natureza, Homens entre si; e designa também a apropriação, através da
consciência, da escrita e dos sinais, desses mesmos acontecimentos, dessas
mesmas lutas. A não distinção destes dois conteúdos, bem como a não distinção
das relações que mantêm entre si, geram continuamente um sem-número de
equívocos, designadamente o de que a História teoria é o espelho da História
vivida, quando não a própria História vivida, verdadeira e eterna como o Livro
Sagrado. E, no entanto, aceitar que a História teoria não é a História vivida
parece uma simples redundância.
Que relações mantêm estas histórias entre si, que relações mantém a
nossa descrição dos acontecimentos sociais com as lutas reais, com os Napoleões
reais? Os livros de História Universal ou Nacional não são o igual mas o símbolo
da História real, dos Afonsiques reais. Símbolos não revelados, laboriosamente
construídos, de maneira mais ou menos eficaz, permitindo assim ao autor ou
manuseador dos símbolos um comportamento mais ou menos adequado face ao
passado, ao presente e ao futuro. O historiador, o homem que faz, que escreve,
que fala a História teoria, que vê o visível da História vivida, está sujeito à
partida, como vimos já. Actua em circunstâncias históricas predeterminadas.
Usando uma expressão clássica, o educador é educado, o criador criado, o
produtor produzido.
É pela consciência (pela consciência científica) que o historiador (e
nós com ele através dos sinais) se apropria do real histórico. Mas a
consciência tende a apresentar-se como o real e a construtora do real. Escreve
Marx: para a consciência, e tal é a determinação da consciência filosófica,
para quem o pensamento conceptual constitui o homem real e para quem
seguidamente só o mundo apreendido no conceito é como tal o mundo real, o
movimento das categorias surge-lhe como o verdadeiro acto de produção (o qual,
que maçada!, recebe afinal um impulso do exterior), cujo resultado é o mundo.
Isto é exacto mas não passa de uma outra tautologia, na medida em que a totalidade
concreta enquanto totalidade pensada, concreto pensado, é de facto um produto
do acto de pensar, do acto de conceber. Não é, pois, de modo algum o produto do
conceito que se engendraria a si próprio, que pensaria fora e acima da intuição
e da representação, mas um produto da elaboração que transforma percepções e
representações em conceitos. A totalidade tal como aparece no espírito como um
todo de pensamento é um produto do cérebro pensante que se apropria do mundo da
única maneira possível, maneira que difere da apropriação do mundo na arte, na
religião, no espírito prático. Depois como antes o sujeito real subsiste na sua
autonomia fora do cérebro». In António Borges Coelho, Questionar a
História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial
Caminho, Lisboa, 1983.
Cortesia de Caminho/JDACT