Coimbra,
Julho de 1117
«(…) O menino observa uma última
vez as tropas do califa. Nunca teve jeito para contas, mas ouviu dizer que são
milhares. Pergunta a si próprio o que faria seu pai contra tantos. Foi vê-lo
morrer num quarto sombrio da distante Astorga, e aquelas barbas falantes
continuam dentro da sua cabeça. À noite, visitam-no, enormes e perturbadoras, e
falam muito, falam sempre com ele, mas raramente percebe o que dizem. O pai é
um fantasma, mas o menino gosta muito dele. Então, semicerra os olhos, sente
uma fúria a crescer no coração, firma os dedos no granito da ameia e decide
fazer uma promessa ao seu defunto pai. Lutarei até à morte e não deixarei
Portugal cair nas mãos dos sarracenos!
No quarto do castelo, nessa manhã,
eu e meus irmãos ouvimo-lo gritar. Embora eu fosse o mais dorminhoco dos três,
já tinha acordado e preparava-me para ir brincar quando escutei aquela berraria
do meu melhor amigo, Afonso Henriques. Aos gritos, ele prometeu ao conde
Henrique lutar, lutar sempre, e se houve promessa que o meu melhor amigo
cumpriu durante a sua longa vida foi aquela que fez ao pai, ao Sol e às nuvens,
aos oito anos, no alto da torre do castelo de Coimbra, em frente dos exércitos
de Ali Yusuf. Portugal começa como o fruto de uma promessa infantil.
Coimbra. Julho de 1117
Durante um passeio pela muralha de
Coimbra, meu tio Ermígio e meu pai, Egas Moniz, chegaram a uma óbvia conclusão:
era à divisão entre os cristãos que se devia a ousadia do califa almorávida que
cercava a cidade. Desde a morte de Afonso VI, oito anos antes, os reinos
peninsulares viviam numa bulha permanente que os tornava vulneráveis. Meu pai e
meu tio, que tinham apenas um ano de diferença e estavam ambos a chegar aos quarenta,
faziam a sua ronda matinal, cada um vestido com a sua dalmática, verde a de meu
tio, azul a de meu pai. Pareciam dois pássaros eróticos, avançando em
pequeninos passos, enquanto iam relembrando os culpados da desordem cristã. Afonso
I de Aragão; dona Urraca; Gelmires, o maligno arcebispo de Compostela; Pedro
Froilaz de Trava, pai de Bermudo e Fernão, e perceptor do futuro herdeiro,
Afonso Rairnundes. E também dona Teresa. Mas talvez o maior culpado seja Afonso
VI, concluiu Ermígio Moniz.
O velho imperador, avô de Afonso Henriques,
baralhara tudo com os seus caprichos terminais. Era uma sombra do gigante que conquistara
Toledo aos infiéis, o mais grandioso de todos os reis de Leão desde os visigodos.
As suas decisões sucessórias. abruptas e ilógicas, haviam lançado a confusão na
Península. Ao longo da vida, Afonso VI casara com muitas mulheres, porém elas
só lhe davam filhas. Urraca, Teresa e outras meninas, legítimas ou bastardas, mas
nada de meninos. Teve de ser uma moura convertida, Zaida, a filha do rei de Sevilha,
a deitar cá para fora um rapaz. Porém, Deus não evita as desgraças mais cruéis,
principalmente a quem as procura. Sancho, o único filho do imperador, foi enviado
para a guerra à frente das tropas do pai, e morreu, com apenas treze anos, às mãos
deste mesmo califa que agora cerca Coimbra.
Diz-se que Afonso VI ainda uivava
de dor cinco dias depois de lhe darem a notícia. O filho fora trespassado por uma
lança sarracena, em Uclés, e assim partira deste mundo o único que poderia ter unido
cristãos e muçulmanos, pois tinha sangue real dos dois lados.
Sem varão a quem deixar a coroa, desfeito
de amargura, Afonso VI olhou à volta, para o resto da sua família. Havia uma
primeira filha, Urraca, cujo marido, o borgonhês Raimundo, já morrera. Tinha dela
um neto que era o primeiro rapaz na linhagem, Afonso Raimundes, com apenas quatro
anos. Existia um primo afastado, que reinava em Aragão e se chamava igualmente Afonso.
E tinha uma segunda filha bastarda, dona Teresa, que também era casada com um borgonhês,
o conde Henrique, e que acabara de ser mãe do seu primeiro rapaz, Afonso
Henriques.
Contra a vontade dos seus conselheiros,
o velho rei desafiou o destino e promoveu uma união arriscada, recordou meu pai.
Afonso VI obrigou a filha viúva, Urraca, a casar com o primo distante, Afonso I
de Aragão, e determinou que o primeiro varão fruto desse casamento seria o futuro
imperador da Galiza, de Leão, de Castela, de Aragão e até de Navarra; o rei dos
Cinco Reinos, e aquele a quem prestariam tributo as taifas, os pequenos reinos mouros
da Ibéria, como Sevilha, Córdova, Saragoça, Múrcia e Badajoz». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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