Cárceres e quotidiano
Nos cárceres de vigia
«(…) Com estas testemunhas e estes testemunhos se preparavam juridicamente
as pessoas para a morte. Manuel Fernandes Vila Real (queimado no Terreiro do
Paço no dia 1.º de Dezembro de 1652, na presença do rei João IV a quem tanto
ajudara a segurar a coroa), Manuel Fernandes Vila Real vira agravada a sua
situação ao descobrir o segredo dos cárceres de vigia da Inquisição (maldita) de Lisboa. Sem querer dizer de seus
irmãos que tem nesta cidade nem de pessoa alguma que nela resida e ser tão
manhoso que atinou com os buracos das vigias dos cárceres e tapou os da quinta
casa do meio novo [...] Causaria notável prejuízo ao ministério do Santo Ofício
(maldito) publicando e descobrindo o
segredo das vigias, que é de tanta importância, podendo-se temer com toda a
certeza que seria o réu, escapando, de grandíssimo dano ao tribunal da
Inquisição (maldita) e seu justo
procedimento, o que muito se devia e deve atender ainda no caso que este réu
pudesse chegar a estado de escapar com vida.
Polé e potro
Haverá uma casa com os instrumentos necessários para nela se dar
tormento aos presos.
A planta de Mateus do Couto não indica expressamente a sala do
tormento, a qual, apesar disso, funcionava, pelo menos aplicando os tratos de
polé desde os primeiros anos da Inquisição (maldita)
de Évora. Inclinamo-nos, à vista da planta, a situá-la no piso térreo, numa das
duas salas que também serviam de prisão, uma delas amurada ao templo
romano/açougue. Em 1542, Duarte Fernandes, marceiro, de 45 anos, natural de Lisboa
e residente em Moura (o pai fora trapeiro fabricando panos), foi submetido a
tormento. Subido no ar, foi-lhe lido o libelo e aplicaram-lhe três tratos,
leves e fracos os dois primeiros, o terceiro mais forte. Descido, foi novamente
içado, sofrendo o quarto trato. Em 1572, Tomás Alvares Barselai, de Beja, de 50
anos, que vivia por sua fazenda, foi atado pelos ditos ministros e amoestado com
caridade. Disse que todos serão hereges e maus cristãos, o que disse com
clamores grandes [...] E logo disse que tudo o conteúdo no dito libelo
confessava. E disse que o descessem abaixo que todos serão judeus. E perguntado
o que queria dizer, disse que não sabia que dissesse. Que acabassem de o matar.
E foi alevantado. E estando alevantado do chão disse por muitas vezes que todos
eram judeus na vontade e não lhes vira fazer cerimónias. E foi levado a toda a
riba da polé. Disse que não sabia mais que dissesse. E logo foi solto e deixado
cair. E tornado a amoestar por muitas vezes com caridade sempre disse que tinha
dito muita verdade e foi mandado levar ao seu cárcere. A palavra caridade
queima aqui como ácido.
Em 20 de Novembro de 1593, os inquisidores Jerónimo Teixeira Cabral,
João Bragança e Rui Pires Veiga escreveram ao arquiduque Alberto, cardeal,
governador e inquisidor-geral do reino de Portugal. Senhor, querendo proceder a
execução do tormento com as pessoas que forem despachados com ele, achamos que
alguns deles eram quebrados e outros doentes destes males. E porque esses e outros,
conforme ao parecer do médico e cirurgião, não podem ter trato esperto sem
provável perigo de sua vida, nos pareceu que o melhor remédio que havia, para a
justiça não perder seu direito e eles poderem salvar suas almos, dizendo a
verdade de suas culpas, era fazer-se nesta Inquisição (maldita)
um potro como o há na de Lisboa. Porque no tormento dele não correm as
ditas pessoas o perigo que arreceamos no outro. E poderia também servir para
velhos e outros que têm algum impedimento por respeito dos quais o tormento da polé
lhes fica mais dificultoso. O cardeal Alberto respondeu favoravelmente.
A 29 de Novembro insistem os inquisidores de Évora: recebemos a carta
de V. Alteza de 24 do presente em que V. Alteza há por bem haja nesta
Inquisição (maldita) o potro, que escrevemos
nos parecia houvesse nela para os que não podiam ter tormento de polé. O que
faremos logo e daqui por diante usaremos dele com todos. Como V. Alteza manda
para este o que está na Inquisição (maldita)
dessa cidade e fazer então por ele vai lá Lourenço Dias, carpinteiro desta
casa, da maneira que V. Alteza mandou. A prática que até agora tínhamos no
tormento de polé era dar a cada um os graus de tormento, conforme aos indícios
que tinha. E estes graus eram ad faciem tormenti; começá-lo a atar;
atado de todo; começá-los a levantar; alevantá-los até, ao lugar em que se lhes
lê o libelo; alevantados até à roldana; tratos corridos; um esperto; dois
espertos; e os que pudesse levar a arbítrio». In António Borges Coelho,
Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1, Editorial Caminho,
colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da Leitura, 1987.
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