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Início
de uma vida épica
Sertã.
Maio de 1465
«(…) Teria sido na sequência da
bravura patenteada perante os mouros, no assalto a Alcácer-Ceguer, que Pedro
Barriga ascendeu à condição de Cavaleiro do reino. Estava, agora, de volta das
frustradas tentativas em 1463 e 1464 para a tomada de Tânger, praça-forte do
sultão de Fez, Abd al-Haqq II. Este mesmo sultão prendera o infante Fernando, em
1437, e mantivera-o cativo até à sua morte, ao não ter visto satisfeita a
exigência imposta a Portugal: a entrega de Ceuta. As pesadas derrotas
que a armada e o exército português haviam sofrido deixaram feridas no corpo e,
sobretudo, no coração orgulhoso de seu pai. Este, agora, só pensava na carreira
do filho e em como orientá-lo para o que o porvir lhe traria.
As aulas de equitação duravam
horas. No volteio, o pai obrigava-o a constantes exercícios de perícia e força,
deixando-lhe o corpo completamente destroçado. As aulas de esgrima, com espada de
madeira, deixavam-lhe marcas que o pai lhe infligia, ao mesmo tempo que exigia
valentia. A tenacidade que Pedro Barriga impunha ao filho era a mesma que
exibira aos olhos do rei nas empresas de conquista das praças do Norte de
África e que, um dia, queria ver ostentada pelo seu descendente. Contava-lhe o
pai, nos intervalos do intenso treino a que o sujeitava, que em consequência da
política de expansão ultramarina portuguesa e do necessário alargamento da Fé
Cristã, fora atacada Alcácer-Ceguer. Foram dois dias de intensos combates, em
23 e 24 de Outubro de 1458, em que o exército português, comandado pelo
magnífico rei Afonso V, saiu, finalmente, vitorioso.
Alcácer-Ceguer ficava localizada
no estreito de Gibraltar, entre Tânger e Ceuta. Dificilmente acessível por mar,
era dominada pela elevação de Seinal, povoação subjugada por vários povos ao
longo dos tempos. Para os romanos era conhecida como Lissa, ou Exilissa, tendo sido
conquistada pelos árabes, por volta do ano de 708, aquando da ocupação
muçulmana do Magrebe. Durante o califado almóada, foi um importante porto de
embarque de tropas para a Península Ibérica; entretanto, convertera-se num
reduto de corsários.
Nas ocasiões em que o senhor seu
pai se decidia a elucidá-lo sobre o que era ser um Cavaleiro em acção no campo
de batalha, ombreando com os grandes nomes do reino, parava o treino,
permitindo algum descanso. Assim, aprendeu a estimular esses relatos. Numa
dessas ocasiões, o pai falou-lhe da constituição e comando da armada que
abordou Alcácer-Ceguer. Lopo Barriga ficou a saber que, nessa aventura, participaram
o infante Henrique, o infante Fernando, o marquês de Valença, o marquês de Vila
Viçosa, entre outros. As forças comandadas por el-rei Afonso V eram
constituídas por uma frota de duzentas e vinte embarcações e um exército de
vinte cinco mil homens. Depois de reunida em Lagos, a armada partiu a 17 de Outubro
de 1458. Dois dias depois foi empurrada pelos ventos para perto de Tânger; ali
fundeou, cogitando-se sobre um possível ataque à cidade, até então
inexpugnável; no entanto, apelando à razão, o infante Henrique decidiu manter o
plano inicial.
O sultão foi notificado da
presença da frota portuguesa nas proximidades de Tânger. Enquanto preparava um
ataque a Tlemcen, decidiu deslocar as suas forças para defender Tânger. A
conquista de Alcácer-Ceguer só foi viável devido à combinação de duas causas: a
supremacia da artilharia portuguesa e o erro de estratégia do sultão de Fez.
Contava o Cavaleiro Pedro Barriga que, a determinada altura, se viu rodeado de
mouros. Pelejando com quanta força tinha, foi trucidando infiéis; a salvação
foi que, ao recuar, esbarrou costas com costas com um cavaleiro cristão e os
dois degolaram e sangraram um montão de ímpios. Cobertos de sangue e suor,
selaram uma forte amizade, mas, infelizmente, depois que terminou a campanha,
nunca mais se voltaram a encontrar. Chamava-se aquele Lourenço Rodrigues, um
algarvio de Estoi, uma aldeia nas proximidades da vila de Faro, recordava Pedro
Barriga. Alcácer-Ceguer acabou por se render, os habitantes abandonaram a povoação
com tudo o que puderam transportar. Afonso V seguido pela sua gente, foi em
procissão até à mesquita benzida e convertida em igreja de Nossa Senhora da
Conceição.
De acordo com o que lhe contava o
senhor seu pai, a desforra islâmica não se fez esperar. El-rei Afonso V ainda
se encontrava em Ceuta quando foi avisado de que Abd al-Haqq II se preparava para
reconquistar Alcácer-Ceguer. Ceuta já era praça portuguesa desde 1415,
conquistada aos mouros por el-rei João I, o fundador da casa de Avis. Essa
conquista foi uma mistura de cruzada com a necessidade de controlar a navegação
à saída do mar Mediterrâneo, impedindo a insistente investida moura às costas
portuguesas. Afonso V de imediato, decidiu acorrer em defesa da praça ameaçada.
A esquadra portuguesa aportou ao largo de Alcácer-Ceguer, mas não foi possível
fazer chegar qualquer tipo de ajuda aos sitiados, e os sitiantes não se
amedrontaram ao avistar a frota. Os portugueses, resistindo ao cerco, sob o
comando de Duarte Menezes, lutaram durante cinquenta e três dias, impondo
perdas importantes ao inimigo. A 2 de Janeiro de 1459, os mouros acabaram por
desistir». In Luís Barriga, Em Nome D’El Rey, Clube do Autor, Lisboa, ISBN
978-989-724-448-3.
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