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Cárceres e quotidiano
Polé e potro
«(…) E como não temos prática nem experiência do potro, não temos
também no teor dos graus que correspondem nele ao que temos dito. Pelo que
pedimos a V. A. nos faça mercê mandar-nos avisar de como neste devemos proceder,
porque os doutores que temos nisto e que falam nestes graus somente põem
exemplo nos tratos de polé. E porque também o ministro que temos não sabe como se
há-de haver neste tormento, pareceu devíamos lembrar a V. A. convinha vir cá o
que dá nessa Inquisição (maldita) porque,
com uma semana que cá esteja, ficará o outro instruído de maneira que corra nesse
particular com facilidade. Em 18 de Janeiro de 1594 já Inês Fernandes, de 45
anos, natural de Serpa e moradora em Beja, viúva de Diogo Rodrigues Dourado, o Poeta,
e filha de homem de negócio, experimentava os torniquetes do potro. Três anos
antes, resistira como negativa a um trato esperto. Agora despojam-na dos
vestidos, ficando com umas ceroulas compridas até baixo e uma camisa grande por
cima. Sentam-na no potro e admoestam-na. Atam-lhe depois os braços descobertos
e, deitada, amarram-lhe os braços e as pernas e admoestam-na de novo. Levou
seis voltas, uma em cada braço, duas nas coxas e duas nas pernas. E depois de
novamente admoestada, taparam-lhe o rosto com o véu e lançaram-lhe quatro púcaros
de água pela boca.
Os notários dos diferentes processos dão notícia de tormentos mas
ignoram, por exemplo, as acusações do jesuíta Gaspar Miranda: alguns de todos
os ministros do Santo Ofício (maldito) se
mostram inclinados a tratos, e desumanos, quando assistem neles. E dizem palavras
com que afligem mais aos tratados, e os afrontam. E noutro passo: dão-se com
menos decência, principalmente a mulheres. Não faltam também referências a
presos algemados nas suas casinhas, a açoites com pregão e a outros tipos de
tortura. No ano de 1569, dois ratinhos que vieram este Verão trabalhar
em Alentejo denunciaram Rui Vicente de Elvas, por lhes dizer: se os
inquisidores os [cristãos-novos] metiam nas casinhas e lhe rapavam as solas dos
pés e os faziam passear por trigo e lhe davam outros tormentos como não confessariam
o que não era? Podemos seguir a fórmula geral dos autos de tormento servindo-nos
ainda do processo de Isabel Álvares, tia-bisavó de Bento Espinosa: 7 de
Fevereiro de 1598. Acórdão os inquisidores ordinários e deputados da Santa
Inquisição (maldita) que, vistos estes
autos e qualidade da confissão de Isabel Álvares, cristã-nova da vila da
Vidigueira, per que se mostra ela não confessar inteiramente suas culpas, como era
obrigada, e os grandes indícios que contra ela resultam de encobrir pessoas de
sua nação, especialmente suas conjuntas, com as quais comunicou a crença da Lei
de Moisés; antes de outro despacho, seja posta a tormento, conforme ao assento,
que neste seu processo está tomado, onde será perguntada pelo sobredito, para
que manifeste a verdade para remédio de sua alma e das ditas pessoas, o que
assim mandam sem prejuízo do provado e por ela confessado.
Os inquisidores Salvador Mesquita e António Furtado Mendonça, o notário
António Pires Dantas e os oficiais do tormento (carrasco e cirurgião ou médico)
deram execução ao acórdão. Sigamos o registo do notário Dantas: e publicada a
dita sentença, foi a ré outra vez admoestada acabasse de confessar suas culpas
e não se queira ver em trabalhos. E por não dizer nada, foram chamados os
ministros para dentro, aos quais foi dado juramento dos Santos Evangelhos, em
que puseram suas mãos, sob cargo do qual lhes foi mandado que bem e
verdadeiramente fizessem seu ofício e tivessem segredo no caso. O que eles
prometeram fazer. E logo a ré foi assentada na cadeira aonde foi outra vez admoestada
que acabasse de confessar. E por não querer, lhe foi dito que se ela morresse
neste tormento ou quebrasse algum membro de seu corpo, a culpa fosse sua e não
deles nem por isso incorressem em irregularidade. E foi começada a atar com a
primeira correia. E sendo atada de todo e posto o balancé, foi alevantada até à
roldana, digo, até ao lugar do libelo aonde lhe foi lido. E depois de lido, foi
alevantada até ao lugar da roldana aonde estando foi admoestada que acabasse de
confessar. E por não querer, foi deixada cair e teve um trato esperto. Os tormentos,
potro e polé graduavam-se por ordem crescente de gravidade numa tabela de equivalências:
Polé
l.º Ad faciem tormenti (o réu é posto no banco com as mãos
atrás).
2.º Começar a atar (atar a primeira correia sem apertar).
3.º Pôr correia sem apertar.
4.º Pôr segunda correia.
5.º Atado perfeitamente, isto é, ligado ao calabre para
içar.
6.º Começar a levantar até ao primeiro sobrado.
7.º Levantar até ao libelo, isto é, até ao segundo sobrado.
8.º Levantar até à roldana.
9.º Um trato corrido (descer lentamente).
l0.º Um trato esperto (descida brusca)».
In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume
1, Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da
Leitura, 1987.
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