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«(…) Baixando o olhar, o jovem notou no piso inferior, sobre um
embasamento de mármore, as janelas da cripta. Esta devia ser bem maior que a de
seu pequeno mosteiro perdido entre as lagunas. Ignazio pousou-lhe a mão no
ombro e levou-o para a frente do edifício, atravessando a multidão barulhenta.
Sobre o portal, quatro cavalos de bronze reluziam ao sol da manhã já adiantada.
Espantosas, não? Fazem parte do espólio da Quarta Cruzada, explicou o mercador,
mostrando as estátuas. Diante de tanta magnificência, Uberto sentiu-se um pouco
deslocado. Lá estava ao pé de um edifício majestoso, no coração de uma cidade
marítima que desafiara e vencera a soberba Constantinopla. E ele, um convertido
que quase nada conhecia do mundo, só
podia sentir perplexidade e entusiasmo. Antes de entrar na basílica, o mercador
dirigiu-se a Willalme: espere aqui e fique alerta, disse-lhe à meia-voz. Eu vou
com o rapaz. O francês anuiu e, sem replicar, afastou-se dos companheiros e foi
sentar-se na escadaria diante da fachada, confundindo-se com a massa de
passantes e mendigos. Depois de atravessar o vestíbulo iluminado, Ignazio e
Uberto mergulharam na sombra da basílica. Caminharam sobre o piso ladrilhado
até chegar à extremidade da nave principal. Dali distinguia-se com clareza que
os quatro braços do edifício formavam uma cruz. E cada braço, por sua vez, se
subdividia em três naves menores com colunatas paralelas. Uberto ergueu os
olhos para o tecto coberto de mosaicos dourados.
Mas, em baixo, sombras taciturnas vagavam por entre os pórticos à luz dos
candelabros. De repente, Ignazio estacou, chamou a atenção de Uberto com uma
leve pressão no ombro e pigarreou. Aproximava-se deles um homem de fronte alta
e cabelos cinzentos, vestindo uma túnica amarela bordada, calças pretas e botas
de couro. Trazia aos ombros um manto de veludo vermelho. Era o conde Enrico
Scalò, seu antigo conhecido, um rico patrício amigo do doge e membro do
Conselho dos Quarenta. Ignazio saudou-o com respeito. Meu senhor, eu estou
feliz em revê-lo. E acrescentou, pois não ignorava o narcisismo daquele homem:
radiante como sempre! Um dia destes, vai revelar-me o que faz para se manter
sempre em forma.
Mestre Ignazio, o segredo são as boas comidas e as belas
mulheres, pavoneou-se o nobre. Mas logo se fez sério: apreciei muito que tenha
atendido ao meu chamado. Tenho uma missão importante a lhe confiar. Sou todo
ouvidos. Ah, peço licença para lhe apresentar o meu novo assistente, Uberto, disse
o mercador, apontando o seu companheiro. A essas palavras, o rapaz fez uma
mesura complicada, como aprendera no mosteiro de Santa Maria del Mare. Scalò
cumprimentou-o com um aceno de cabeça e acrescentou: endireite-se, meu jovem. Uberto
obedeceu, esboçando um sorriso tímido. Com seu manto grosseiro, sentia-se ínfimo
diante daquele elegante patrício. O nobre virou-se novamente para o mercador: a
propósito, Ignazio, uma noite destas, eu gabava, em companhia do bispo, o valor
de um presente seu. Lembra-se da Bíblia ilustrada que me enviou no ano passado?
Aqui está ela. Trago-a sempre comigo.
O conde manuseava um livro velho. Abriu-o, e Uberto pôde
admirar as figuras que ilustravam as páginas, imagens sacras; certamente, obras
de um miniaturista alexandrino. Lembro-me perfeitamente, admitiu Ignazio,
lembrando-se, sobretudo, do pouco que ganhara com aquela transacção. Não foi
nada fácil obtê-la. O nobre aquiesceu compreensivo. O doge apreciou muitíssimo
este livro e quis que uma das suas miniaturas mais bonitas fosse reproduzida
entre os mosaicos de São Marcos. Venham, vou mostrar-vos. Dizendo isso, o conde
levou-os para o braço ocidental da basílica.
Atravessou uma passagem sob a colunata de mármore, cruzou um portal e chegou ao
pátio. Aquele lugar, conforme Uberto já notara de fora, estava sendo
restaurado. Hoje é domingo, não há operários a trabalhar, explicou o nobre,
abrindo caminho por entre andaimes e pedras soltas.
Parou diante de uma pequena cúpula. Apesar de a decoração não
estar ainda concluída, via-se nitidamente um mosaico que representava três
anjos alados diante de uma figura masculina. Ignazio notou imediatamente a
semelhança com uma das miniaturas do códice alexandrino. Uberto examinou as
figuras angélicas. À sua direita, percebia-se uma árvore ainda incompleta. Parece
uma cena do Velho Testamento, disse ele, sem que ninguém lhe houvesse perguntado
nada. Representa os três anjos que apareceram a Abraão. Mas repare bem no
quarto homem à esquerda, meu jovem, respondeu o nobre, alisando os cabelos. Aquele
não é Abraão, mas o Pai Celestial. O mosaico representa o terceiro dia da
Criação. Os seres alados, que chama de anjos, indicam os dias transcorridos
desde o início da obra divina. São símbolos do tempo. Uberto enrubesceu. Bela
figura tinha feito!, ele pensou. É o que se ganha dizendo despropósitos. No entanto,
interveio Ignazio com o indicador erguido, essas criaturas aladas são mais
misteriosas do que parecem». In Marcello Simoni, O Mercador de Livros Malditos,
2011, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa, 2012, ISBN
978-989-224-029-4.
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