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«(…) Ora, aqui estamos, disse
Felipe. Assim me parece melhor. Um pêlo púbico, inspetor-chefe. Preto. Os três
homens viraram-se simultaneamente para a janela, porque ouviram vozes abafadas
por detrás dos vidros duplos e um som mecânico, como o de um elevador. Do lado
de fora da varanda, apareceram lentamente dois homens de macacão azul, um com o
cabelo comprido, preso em rabo-de-cavalo, e o outro cortado à escovinha e um
olho negro. Estavam berrando para a equipa que, dezoito metros abaixo, acionava
o mecanismo do monta-cargas. Quem são estes idiotas? Perguntou Felipe. Falcón
saiu para a varanda, espantando os dois homens que se encontravam de pé na
plataforma e que acabavam de ser içados por uma espécie de escada extensível, a
partir de um caminhão estacionado na rua. Quem raio são vocês? Somos da empresa
de mudanças, disseram e lhe viraram as costas para mostrarem, estampado em
letras amarelas nos macacões, as palavras Mudanzas Triana Transportes
Nacionales y Internacionales.
O
juiz Esteban Calderón autorizou o levantamento do cadáver, que revelou outro
elemento de prova para guardar num saco. Por baixo do corpo, estava um farrapo
de algodão, cujo cheiro indiciava clorofórmio. Um erro, disse Falcón. Diga,
inspetor-chefe? Perguntou Ramírez, por trás do ombro dele. O primeiro erro numa
operação planeada. Então e os cabelos, inspetor-chefe? Se esses cabelos
pertencerem ao assassino... Perdê-los foi um acidente. Deixar um trapo embebido
em clorofórmio foi um erro. Ele pôs Raúl Jiménez inconsciente com clorofórmio,
não quis guardar o farrapo no bolso, atirou-o em cima da cadeira e, depois,
atirou Raúl para cima dele. Fora da vista, fora da lembrança. Não é uma pista
assim tão importante... É um indício do tipo de mente com que deparamos. É uma
mente cuidadosa, mas não profissional. Pode ter sido descuidado noutras áreas;
por exemplo, na obtenção do clorofórmio. Talvez o tenha comprado aqui em Sevilha,
num laboratório ou numa loja de artigos médicos; ou pode tê-lo roubado num
hospital ou numa farmácia. O assassino pensou obsessivamente no que queria
fazer à vítima, mas não em todos os pormenores do acto em si.
A sra. Jiménez foi localizada e
informada. Mandámos um veículo levar os filhos para a casa da irmã, em San
Bernardo, e trazê-la para cá. Quando o médico forense faz a autópsia? Perguntou
Falcón. Quer estar presente? Perguntou Calderón, balançando o celular. Ele disse
que ia fazê-la imediatamente. Não há necessidade, disse Falcón. Só quero os
resultados. Há muito a fazer por aqui. Este filme, por exemplo. Creio que devíamos
todos ver estas filmagens do La Familia Jiménez, já, antes que a sra. Jiménez
chegue. Tem aqui mais alguém da brigada, inspetor? O Fernández está a falar com
o conserje, inspetor-chefe. Diga-lhe para recolher todas as fitas cassetes das
câmeras do sistema de segurança, vê-las com o conserje e tomar nota de toda a
gente que ele não reconheça. Ramírez avançou para a porta. E outra coisa...
Arranje alguém para indagar em todos os hospitais, laboratórios e lojas de
produtos médicos sobre clorofórmio vendido a pessoas inusitadas ou frascos
desaparecidos. E instrumentos cirúrgicos também. Falcón fez deslizar o móvel de
TV/vídeo para a posição habitual, ao canto da sala. Calderón sentou-se na
cadeira de pele. Falcón voltou a ligar o aparelho. Ramírez ficou em pé junto à
cadeira do morto, que estava agora envolvida em plástico, pronta para seguir
para os laboratórios da Policia Científica. Murmurou umas coisas para o telefone
móvel. Calderón fez ejectar a cassete, inspeccionou a fita, voltou a
introduzi-la e apertou o botão de rebobinar.
Os
homens das mudanças ainda ali estão, inspetor-chefe. Agora não há ninguém para
falar com eles. Eles que esperem. Calderón apertou o play. Sentaram-se todos
pela sala e esperaram, no denso silêncio do apartamento vazio». In
Robert Wilson, O Cego de Sevilha, 2003, tradução de Ana Pires e Pedro Pla,
Publicações dom Quixote, Lisboa, 2004, ISBN 978-972-202-615-5.
Cortesia
de PdomQuixote/JDACT