Início
de uma vida épica
Sertã.
Maio de 1465
«(…) Toda a preparação a que Lopo
Barriga era submetido, apesar da sua tenra idade, tinha uma forte razão de ser:
advinha de ter chegado o momento de ser entregue como pajem a um senhor nobre.
O pai já lhe traçara o destino, o de se tornar Cavaleiro como ele. Por isso, cedo
iniciara o treino do filho, para que este não o envergonhasse e adquirisse os
valores da Cavalaria. Havia feito sete anos no início do ano. Antes de atingir
os catorze anos não subiria à condição de escudeiro; daí até à maioridade,
continuaria as aulas de técnicas de combate, manuseio de armas, preparação
física, assim como de leitura e escrita, O desejo paterno tornara-se o seu
próprio anseio, pois ambicionava um dia obter tantas ou mais distinções que o
progenitor, para que o Cavaleiro Pedro Barriga, finalmente, o olhasse com
orgulho. Não tardaria que o senhor seu pai o fizesse transportar aos domínios de
um grande senhor, para iniciar aí a sua caminhada e se transformar num grande
combatente, ascendendo ao grau de Cavaleiro.
Com esse objectivo em mente,
naquele dia, Pedro Barriga mandou aprontar os cavalos, dois magníficos
exemplares de cavalos ibéricos. Lopo Barriga e seu pai partiram numa manhã
luminosa de Primavera; as despedidas foram curtas, mas sentidas. As irmãs e a
mãe vieram despedir-se, sobretudo de Lopo, pedindo a Deus para o voltarem a ver
de saúde, pois sabiam que dificilmente se encontrariam nos próximos tempos. As
lágrimas da criada Gertrudes fizeram as emoções invadir a garganta do jovem,
mas, como sempre aprendera, um homem não chora; engolindo a comoção, montou
apressadamente. As esporas fustigaram os cavalos, dando início à primeira
grande aventura da sua vida. Ainda olhou para trás, procurando guardar na memória
o lugar que o vira nascer, enquanto os cavalos seguiam o trilho ladeado de um
manto verde.
A viagem foi cheia de peripécias
e de paisagens diversas, em tudo diferentes das que se habituara a ver, mas
completamente ultrapassadas pelo choque da chegada aos domínios do conde de
Monsanto, Álvaro Castro; foi aos seus cuidados que o pai o deixou. Ali se
versou nas incumbências adstritas ao dia-a-dia de pajem, servindo o senhor
conde. O luxo de que se viu rodeado, as soberbas instalações, as magníficas
cavalariças, a bem equipada armaria, tudo o impressionara. Só o treino físico a
que foi submetido lhe parecia ligeiro, e isso devia-o ao senhor seu pai. No que
dizia respeito aos livros, eram horas de grande martírio, espreitando, sempre
que podia, a liberdade nas copas das árvores que se avistavam, ou no voo
estonteante dos pássaros. A armadura e as armas de seu senhor deixaram de ter
segredos; arrear o cavalo, preparando-o para os treinos, passou a ser uma
tarefa simples e banal. Inúmeras vezes, no recato do espaço reservado aos
equipamentos e armas de guerra do conde, envergou a sua armadura reluzente e,
com esforço, esboçou movimentos de esgrima, sob o peso esmagador de toda aquela
parafernália.
As idas e vindas ao Paço Real, no
Castelo de São Jorge, com o seu mentor, passaram a ser comuns, assim como as
longas permanências na capital do reino. O assombro de que foi acometido à
primeira chegada a Lisboa foi sendo apaziguado pela frequência das visitas, proporcionando
habituação ao frenesim lisboeta. Foi numa dessas incursões que conheceu o
príncipe João, pouco mais velho que ele, também entregue à aprendizagem das
artes da guerra. Nas permanências mais duradouras, acabou mesmo por ser
integrado nos treinos dos jovens que estavam a ser educados na Corte. Aqui
encarou com muitas das figuras proeminentes de quem seu pai contava histórias
de aventura e heroísmo. À medida que o tempo passava e que o seu corpo se
preparava para a guerra, Lopo ansiava também por saber mais sobre o mundo e a
sua história. Estava a iniciar o ano de 1471 e a história de Portugal ia-lhe
sendo revelada, ministrada pacientemente pelo professor, e essa era a parte
mais entusiasmante das aulas, onde a escrita e os livros eram as únicas armas.
Lisboa.
Maio de 1459
Um calor infernal abafava a
cidade onde tudo era passível de acontecer, nesta metrópole onde arribava gente
vinda de todas as proveniências. A soalheira impedia que se usufruísse da brisa
marinha e dificultava as normais actividades portuárias. Foi assim que se sentiu
um senhor de aparência nobre ataviado, secundado por alguns serviçais.
Desembarcou aos ombros de um dos possantes marinheiros, não fosse a areia
lamacenta da praia conspurcar o digníssimo calçado que ostentava. Já, com os
pés em terra firme, limpava o suor que lhe escorria pela face, sob o sol a
pique. Apondo a mão em jeito de pala, protegendo os olhos, perscrutou a azáfama
do ancoradouro, procurando algo. Assombrou-se com a riqueza das mercadorias
comercializadas no porto de Lisboa e percebeu que já atracavam à capital
portuguesa muitas das riquezas de África, entre elas, os escravos negros». In
Luís Barriga, Em Nome D’El Rey, Clube do Autor, Lisboa, ISBN 978-989-724-448-3.
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