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Santarém.
Fevereiro de 1147
«(…) Rabinho solteiro, sonha com
parceiro.
Foi tal o corrupio de gente a
cumprimentá-lo que Mem teve de reter-se em conversas demoradas e de provar
repastos oferecidos, numa ou noutra casa. Porém, o seu olho atento não parou de
mirar as muralhas na tentativa de descobrir uma fraqueza. A dada altura,
enquanto examinava uma frecha por reparar, escutou uma voz inesperada, que lhe
provocou temor de ter sido descoberto. É por ali que se ataca! Quando se virou para
trás, Mem viu um jovem, talvez com vinte anos, de cabelos longos. Musculado e
alto, de olhar vivo, o indivíduo transbordava confiança, mas também uma espécie
de intensidade enlouquecida, própria dos amantes da violência. Era irrequieto e
mexia muito os braços, como se precisasse constantemente de os exercitar. E
devia ser pouco dado à prudência, pois logo perguntou: sois Mem, o cavaleiro de
Almourol?
Sempre que o chamavam assim, o
antigo almocreve sentia que a vida lhe sorrira. O outro apresentou-se: Giraldo,
guerreiro e moçárabe como vós! De imediato, começou a gabar-se, lamentando que
Abu Zhakaria não estivesse a mobilizar exércitos, pois precisava de espadeirar
e cortar cabeças. Via-se que gostava disso e o sabia fazer. Era um animai
impetuoso, difícil de ser domesticado. E Afonso Henriques? Junta tropas?
perguntou. Mem referiu que os cristãos estavam sempre precavidos. A Andaluzia
andava a ferro e fogo, olho vivo era essencial. Até ele, em Almourol,
reconstruíra um agora sólido castelo. Precisais de um bom punho por lá?,
questionou Giraldo. Sem parar para ouvir a resposta, garantiu mestria no uso da
espada. Mostrou os reluzentes dentes e jurou a Mem que já degolara mouros e
cristãos, acrescentando: mas os sarracenos vão perder, já não vale a pena lutar
por eles.
Como tinha falta de braços em
Almourol, Mem decidiu aceitar o repto de Giraldo, mas avisou-o de não queria um
assassino descontrolado, tinha de cumprir ordens. Assim farei, se me deres
guarida e comida, jurou Giraldo. Combinaram encontrar-se no dia seguinte,
quando Mem regressasse a Coimbra. Antes de abalar, sempre com os olhos de águia
bravia a brilharem, o outro apontou para o local na muralha que vira Mem
observar e repetiu: é por ali que se ataca!
Um ligeiro incómodo apoderou-se do
cavaleiro de Almourol ao ver Giraldo afastar-se. Aquele agitado exibia uma
alegria facínora e precipitada, que facilmente se sobreporia a qualquer lealdade.
Só que um castelo de fronteira precisava de homens duros, para quem a decência
não existia. Tinha de arriscar.
Cavaleiro vencedor, precisa de um
matador.
Nessa noite, Mem foi ao castelo
de Abu Zhakaria. Fosse quem fosse que tivesse construído a alcáçova, era gente
merecedora de admiração. O palácio de Santarém assentava no topo de uma
elevação e, devido à espantosa situação, alguém o baptizara como o Ninho das
Águias. Inatacável do lado do rio, onde uma empinada escarpa funcionava
como uma defesa natural, do alto das suas torres topava-se qualquer movimento
de tropas a enorme distância. A única forma de tomar aquele íngreme fortim era
um ataque às muralhas a partir da estrada principal, mas uma operação dessas,
se fosse mal preparada, daria tempo aos habitantes de se refugiarem na
alcáçova, onde podiam aguentar-se durante meses.
Povo avisado, ataque malparado». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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