sábado, 10 de novembro de 2018

A Cidade das Damas. Luciana Eleonora F. Calado. «Ao mesmo tempo, trata-se de demonstrar até que ponto toda a abordagem de Christine remete sempre às relações entre os sexos da época em questão»

Cortesia de wikipedia e jdact

Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco para a obtenção do grau de doutor em Teoria da Literatura

Dama Christine Pizan
«(…) Essa ascensão referente à participação feminina à causa intelectual, seja, enquanto mulheres eruditas, moralistas, teólogas, poetas, romancistas, doutas, filósofas, confirma um surpreendente poder de resistência e de várias vitórias, nas querelas de género, travadas ao longo dos séculos, ora no campo literário, ora no jurídico, ora no domínio da sexualidade, mas, sempre sem busca, ao mesmo tempo, da igualdade entre os sexos e do direito à diferença. Eis a essência do paradigma das relações sociais entre os sexos, que sempre foi a chave das questões de género. As vitoriosas intelectuais, tendo a pena como instrumento, e portando um interesse específico sobre a questão feminina de cada época, transformaram o debate puramente literário numa discussão política, iniciando com a teoria aristotélica da polaridade dos sexos, no final da Idade Média. Entre elas, vale ressaltar a escritora Christine de Pizan, que inicia no século XV a querelle des femmes, através do polémico debate epistolar chamado Querelle du Roman de la Rose; travado entre a escritora e alguns intelectuais: Jean de Montreuil, Pierre Col, e Jean Gerson, acerca da misoginia expressa na obra Le Roman de la Rose, uma das mais célebres da idade Média. Junta-se às vitoriosas intelectuais, Marie de Gournay que, em 1626, discute em De l’égalité des hommes et des femmes et Le Grief des dames (1626), a problemática da mulher intelectual em termos feministas. Também a romancista Riccoboni de Lambert que, cujos personagens femininos são levados pelo desejo de escapar à tutela masculina, como l’Histoire de miss Jenny (1764) ou l’Histoire d’Ernestine (1765), tem os seus méritos de escritora, reconhecidos pelas enciclopedistas Diderot e Choderlos. No século XIX, o feminismo político-jurídico de George Sand e Marguerite Durand se inscrevia na linguagem da imprensa e teve um papel de grande importância na cena política da época. E, por fim, no século XX, a grande figura de destaque fica sendo a filósofa Simone de Beauvoir, de contribuição indiscutível nas lutas pelo reconhecimento da mulher no espaço público, através da sua filosofia Existencialista. Todas essas mulheres, entretanto, cujos escritos são objecto de discussões em vários domínios do conhecimento, são levadas a enfrentarem actualmente um outro desafio: o de serem lidas, analisadas, interpretadas como personagens pertencentes a um contexto histórico e literário particular. O eco das suas vozes, do seu pensamento retorna muitas vezes de forma destorcida e iníqua, na medida em que lhes é reclamado um olhar de género fora dos seus contextos. Uma das preocupações dos estudos de género no presente consiste, justamente, em não repetir os exemplos de críticas anteriores, como a do início do século XX, que, sobretudo por ter sido palco de um período particularmente importante de reivindicações feministas, uma espécie de idade de ouro do feminismo que precede o dos anos 70-80, como lembra Michelle Perrot, apresentavam, em muitos casos, considerações anacrónicas, e julgamentos injustos nas análises de textos de séculos anteriores de autoria feminina.
Tais considerações, pude observar, por exemplo, na primeira fase da recepção das obras de Christine de Pizan, no início do século XX. Bastante influenciada pelo movimento feminista emergente da época, a leitura da obra da escritora foi bastante estruturada em um controverso questionamento do seu feminismo. Ao lado da redescoberta dos escritos de Christine de Pizan, com a publicação das edições do Livre des fais et bonnes moeurs du Sage Roy Charles V, o Livre du Chemin de Long Estude, e suas Oeuvres poétiques, editadas por Maurice Roy, assiste-se, simultaneamente, a uma utilização das suas obras pelos conservadores Théodore Joran, Gustave Gröber, como uma arma contra as aderentes dos movimentos de emancipação contemporâneos, ou ainda, à divulgação de uma visão de Christine açucarada, cor-de-rosa, também classificada de feminista de direita, como atesta Margarete Zimmermann, no seu artigo Christine de Pizan et les féminismes autour de 1900, fazendo referência à tese de Rose Rigaud, Les idées féministes de Christine de Pizan. Zimmermann conclui o seu artigo com uma lúcida reflexão transcrita embaixo, uma espécie de apelo à nossa auto-reflexão:

historicidade dos debates dos anos 1900-1940 assim como a historicidade das nossas próprias posições constituem um primeiro passo essencial. Ao mesmo tempo, trata-se de demonstrar até que ponto toda a abordagem de Christine remete sempre às relações entre os sexos da época em questão. Parece-me capital reconhecer tal facto e fazer dele parte integrante das nossas leituras christinianas que, também elas, estão longe de serem inocentes.

De complexidade, pluridisciplinaridade, diversidade estão formadas as várias abordagens que englobam os estudos actuais sobre Christine de Pizan. A investigação das relações de género, no entanto, encabeçam o conjunto dos estudos, sobretudo depois das traduções em várias línguas do livro La Cité des Dames, a partir dos anos 80, considerado a pedra angular do seu feminismo. A onda de seminários, e colóquios internacionais exclusivamente sobre Christine de Pizan, cujas actas são publicadas a partir de 1984 dão prova de um esforço cada vez mais vivo em difundir e diversificar os temas de abordagens da obra dessa escritora, até tão pouco tempo desconhecida, inclusive na Itália e na França, seus países de origem e de adopção». In Luciana Eleonora F. Calado, A Cidade das Damas, A construção da memória feminina no imaginário utópico de Christine de Pizan, Teses de Doutoramento, Universidade de Pernambuco, Recife, 2006.

Cortesia de UniversidadeP/CAC/TeoriaL/JDACT