sexta-feira, 2 de novembro de 2018

A Insustentável Leveza do Ser. Milan Kundera. «Nas línguas em que a palavra compaixão não se forma com a raiz passio = sofrimento mas com o substantivo sentimento…»

jdact e wikipedia

O peso e a leveza
«(…) Tinham exactamente a mesma maneira de rir que as mulheres vivas que dantes se divertiam a dizer-lhe que era perfeitamente normal que um dia também tivesse os dentes estragados, doenças nos ovários e rugas, visto que elas também tinham os dentes estragados, doenças nos ovários e rugas. E agora, com o mesmo riso, explicavam-lhe que estava morta e que isso era a ordem natural das coisas! De repente, teve vontade de fazer xixi. Gritou: mas se eu tenho vontade de fazer xixi! Isso é a prova de que não estou morta! Desataram outra vez a rir às gargalhadas: ter vontade de fazer xixi é normal! Ainda vais sentir tudo durante muito tempo. É como as pessoas a quem amputaram uma mão e que ainda a sentem muito tempo depois. Nós, nós já não temos urina mas continuamos a ter vontade de mijar. Deitada na cama, Tereza chegava-se para junto de Tomás, dizendo: e tratavam-me todas por tu, como se me conhecessem desde sempre, como se fossem minhas amigas, e eu tinha medo de ser obrigada a ficar com elas para sempre! Em todas as línguas derivadas do latim, a palavra compaixão forma-se com o prefixo com e a raiz passio que, na sua origem, significa sofrimento. Noutras línguas, como, por exemplo, em checo, em polaco, em alemão, em sueco, a palavra traduz-se por um substantivo formado por um prefixo equivalente seguido da palavra sentimento (em checo: sou-cir; em polaco: wspol-czucie; em alemão: Mit-gefühl; em sueco: med-känsla). Nas línguas derivadas do latim, a palavra compaixão significa que ninguém pode ficar indiferente ao sofrimento de outrem; ou, de outra maneira: sente-se sempre simpatia por quem sofre. Outra palavra que tem mais ou menos o mesmo sentido, e que é piedade (em inglês pitv, em italiano pierà, etc.), chega até a sugerir uma espécie de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma mulher é sermos mais favorecidos do que ela, é inclinarmo-nos, baixarmo-nos até ela. Por isso é que a palavra compaixão inspira geralmente uma certa desconfiança; designa um sentimento considerado como de segunda ordem e que não tem grande coisa a ver com o amor. Amar alguém por compaixão é de facto não amar essa pessoa. Nas línguas em que a palavra compaixão não se forma com a raiz passio = sofrimento mas com o substantivo sentimento, a palavra é empregue mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um sentimento mau ou medíocre. A força secreta da sua etimologia banha a palavra de uma outra luz e dá-lhe um sentido mais lato: ter compaixão (co-sentimento) é poder viver com o outro não só a sua infelicidade mas sentir também todos os seus outros sentimentos: alegria, angústia, felicidade, dor. Esta compaixão (no sentido de soucit, wspolrzurie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais alta capacidade de imaginação afectiva, ou seja, a arte da telepatia das emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.
Sonhando que estava a enfiar agulhas por baixo das unhas, Tereza traía-se a si própria porque revelava a Tomás que mexia às escondidas nas suas gavetas. Se fosse outra mulher, nunca mais lhe dirigiria palavra. Consciente disso, Tereza dissera-lhe: põe-me na rua! Ora, ele não só não a tinha posto na rua como lhe pegara na mão e lhe beijara a ponta dos dedos, já que, nesse momento, sentia a mesma dor que ela por baixo das unhas, como se os dedos de Tereza estivessem directamente ligados ao seu cérebro. Aquele que não possui o dom diabólico da compaixão (co-sentimento) não pode senão condenar friamente o comportamento de Tereza, porque a vida privada do outro é sagrada e não se devem abrir as gavetas onde ele guarda a sua correspondência pessoal. Mas como a compaixão se tornara o destino (ou a maldição) de Tomás, parecia-lhe que fora ele que se ajoelhara em frente da gaveta da secretária e ficara hipnotizado pelas frases escritas pela mão de Sabina. Compreendia Tereza e não só era incapaz de querer-lhe mal como o seu gesto o fazia amá-la ainda mais.
Os gestos de Tereza eram cada vez mais bruscos e incoerentes. Há já dois anos que descobrira as infidelidades de Tomás e tudo ia de mal a pior. Era um caso insolúvel. Mas como? Tomás não podia acabar de vez com as suas amizades eróticas? Não, isso seria o seu fim. Não tinha força suficiente para refrear o seu apetite por outras mulheres. E depois, parecia-lhe uma coisa supérflua. Ninguém melhor do que ele sabia que essas aventuras não punham Tereza minimamente em questão. Privar-se delas, porquê? Era uma eventualidade que lhe parecia tão absurda como renunciar a ir ao futebol». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.

Cortesia PdonQuixote/JDACT