sexta-feira, 2 de novembro de 2018

A Insustentável Leveza do Ser. Milan Kundera. «Quando as provas eram evidentes demais, tentava demonstrar que não havia contradição nenhuma entre a sua vida de polígamo e o seu amor por ela. Não era nada coerente: umas vezes, negava as infidelidades…»

jdact e wikipedia

O peso e a leveza
«(…) A meio da noite, Tereza começou a gemer. Tomás acordou-a, mas, ao ver a sua cara, ela disse com ódio: vai-te embora! Vai-te embora!' Depois, contou-lhe o sonho que tivera: Estavam ambos algures com Sabina. Num quarto enorme. Havia uma cama no meio, só parecia o palco de um teatro. Tomás mandou-a ficar num canto e pôs-se a fazer amor com Sabina à frente dela. Ela olhava e o espectáculo causava-lhe um sofrimento insuportável. Para abafar a dor da alma com a dor física, pôs-se a enfiar agulhas por baixo das unhas. Doía-me horrivelmente!, disse, com os punhos fechados como se realmente tivesse as mãos magoadas. Abraçou-a e assim, muito devagar (porque Tereza não parava de tremer), ela voltou a adormecer. No dia seguinte, ao pensar no sonho, lembrou-se de uma coisa. Abriu a secretária e tirou um maço de cartas de Sabina. Pouco depois, deparou com a seguinte passagem: queria fazer amor contigo no meu atelier como se fosse o palco de um teatro. Estaria gente em toda a volta e ninguém teria o direito de se aproximar. Mas não conseguiriam despregar os olhos de nós... O pior era que a carta tinha data. Era uma carta recente, escrita numa altura em que Tereza vivia com Tomás já há bastante tempo. Ralhou-lhe: andaste a vasculhar nas minhas cartas!
Sem procurar desmenti-lo, ela disse: pois andei! Então porque é que não me pões na rua? Mas Tomás não a pôs na rua. Via-a era a enfiar as agulhas debaixo das unhas, encostada à parede do atelier de Sabina. Pegou-lhe nos dedos, fez-lhes festas, levou-os aos lábios e beijou-os como se tivessem marcas de sangue. A partir desse momento, tudo parecia conspirar contra ele. Não se passava praticamente um dia sem que lhe chegasse mais uma novidade sobre os seus amores clandestinos. Primeiro, negava tudo. Quando as provas eram evidentes demais, tentava demonstrar que não havia contradição nenhuma entre a sua vida de polígamo e o seu amor por ela. Não era nada coerente: umas vezes, negava as infidelidades, outras, justificava-as. Um dia, estava a marcar um encontro pelo telefone com uma amiga e quando desligou pareceu-lhe ouvir um barulho esquisito na outra divisão, o barulho de dentes a bater. Tereza viera a casa por acaso e ele não dera por isso. Tinha um frasco de calmante na mão e, como estava a beber pelo gargalo e a mão lhe tremia, o vidro batia-lhe contra os dentes. Correu para ela como se fosse salvá-la de morrer afogada. O frasco de valeriana caiu, fazendo uma grande nódoa no carpete. Tereza debatia-se, queria escapar-lhe. Teve de mantê-la durante um quarto de hora numa espécie de colete-de-forças até que se acalmou. Sabia que se encontrava numa situação injustificável porque baseada numa desigualdade absoluta.
Muito antes de Tereza ter descoberto a sua correspondência com Sabina, tinham ido a um cabaré com alguns amigos festejar o novo emprego de Tereza. Deixara o laboratório de fotografia porque a revista a aceitara como fotógrafa: Como Tomás não gostava de dançar, um dos seus colegas mais novos do hospital convidara Tereza. Deslizavam ambos sobre a pista e Tereza estava mais bonita do que nunca. Estupefacto, via com que precisão e com que docilidade ela adivinhava uma fracção de segundo antes a vontade do seu par. Tal forma de dançar parecia proclamar que a sua devoção, aquele seu ardente desejo de fazer o que lhe lia nos olhos, não estava necessariamente ligado à pessoa de Tomás e que podia perfeitamente ter respondido ao apelo de outro homem qualquer que lhe tivesse aparecido em seu lugar. Nada mais fácil do que imaginar Tereza e o seu jovem colega como amantes. Era mesmo a facilidade com que o imaginava que mais o feria. O corpo de Tereza era perfeitamente imaginável unido a qualquer outro corpo masculino. A ideia pô-lo maldisposto. Noite dentro, quando voltaram, confessou-lhe que tinha ciúmes.
Estes ciúmes absurdos, causados por uma possibilidade absolutamente teórica, eram a prova de que a fidelidade dela era para ele um princípio intangível. Como censurá-la então por ter ciúmes das suas amantes mais do que reais? De dia esforçava-se (mas, de facto, não conseguia) por acreditar no que Tomás dizia e por mostrar-se alegre como sempre fora. Mas os ciúmes, contidos durante o dia, manifestavam-se ainda mais violentamente nos sonhos que tinha e que acabavam sempre num gemido que Tomás só conseguia interromper se a acordasse. Os sonhos repetiam-se como temas com variações ou como episódios de uma telenovela. Sonhava, por exemplo, muitas vezes, com gatos a saltarem-lhe para a cara e a cravarem-lhe as garras na pele. Na verdade, este sonho tem uma explicação óbvia: é que em calão checo, quando se quer falar de uma rapariga jeitosa, diz-se gato. Tereza sentia-se ameaçada pelas mulheres, por todas as mulheres. Todas as mulheres eram amantes potenciais de Tomás e ela tinha medo delas. Num outro ciclo de sonhos, era condenada à morte. Numa noite em que acordara a gritar de terror, contou-lhe o seguinte sonho: havia uma grande piscina coberta. Éramos mais ou menos vinte. Só mulheres. Estávamos todas completamente nuas e tínhamos de marchar a passo à volta da água. Havia uma cesta pendurada no tecto e estava um homem lá dentro. Tinha um chapéu de abas largas que lhe escondiam a cara, mas eu sabia que eras tu. Davas-nos ordens. Gritavas. Tínhamos que desfilar a cantar e a flectir os joelhos. Quando uma das mulheres não fazia bem a flexão, tu disparavas a pistola e ela caía morta na água. Nesse momento, as outras desatavam todas a rir e punham-se a cantar ainda mais alto. E tu, tu não tiravas os olhos de nós; se alguma fazia um movimento de través, abatia-la imediatamente. A água estava cheia de cadáveres a flutuar. E eu, eu sabia que já não tinha forças para fazer a flexão seguinte e que tu me ias matar! O terceiro ciclo de sonhos contava o que lhe acontecia depois de morrer. Estava deitada num carro funerário tão grande como um caminhão de mudanças. À sua volta, só cadáveres de mulheres. Havia tantos que era preciso deixar a porta de trás aberta e algumas pernas de fora. Tereza pôs-se a gritar: olhem para mim! Eu não estou morta! Ainda sinto tudo! Também nós sentimos tudo, diziam os cadáveres, entre risinhos». In Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.

Cortesia PdonQuixote/JDACT