Santarém.
Fevereiro de 1147
«(…) No salão, o wali
saudou-o com cordialidade e Fátima, mulher de Abu Zhakaria, apresentou-lhe a
filha, também chamada Fátima e com menos de um ano. Devo-a aos conselhos de
Chamoa!, recordou ela. Enquanto se deliciavam com tâmaras e presuntos, Mem contou
que Zaida vivia infeliz em Silves, sob o jugo intolerante de Ibn Qasi. Sabedor
de que Ibn Wasir preparava um ataque ao palácio do sufi, o cavaleiro de
Almourol tencionava raptar a princesa nesse momento. Quero roubá-la ao marido, declarou
Mem, antes de perguntar: aceitais vossa irmã aqui, se eu a trouxer? Depois de
suspirar, Fátima respondeu que o seu antigo acinte contra Zaida desinflamara.
Haviam sido Afonso Henriques, primeiro, e depois Ismar e Raimunda a intrometerem-se
entre elas, mas esses tempos já lá iam. Agora, desejava a paz familiar e
aprovou o regresso da irmã. Quando ides buscá-la?, perguntou. O ataque de Ibn
Wasir a Silves é esperado para o Verão, disse Mem. Desejo-vos boa sorte, rematou
Fátima. Despediram-se com abraços genuínos, mas mal passou a porta do palácio
um agudo desconforto apoderou-se de Mem. Mentir não lhe estava na natureza e
enganara o wali e a esposa. Viera falar-lhes de Zaida e em breve estaria
a trepar as muralhas daquele castelo. Ajudaria os portucalenses a conquistar
Santarém e depois correria a Silves, donde traria Zaida. Mas não para a
entregar à irmã.
Em tempo de guerra, a verdade se
enterra.
Coimbra. Março de 1147
Queridos filhos e netos, os dias
que antecederam a partida rumo a Santarém foram confusos para mim. Hoje, quando
os recordo, concedo que a minha intranquilidade interior: dramatizava qualquer
situação, mas os comportamentos alheios também não ajudaram. Nos últimos
tempos, Afonso Henriques mantivera-me à margem das decisões guerreiras, e foi
só através do meu sobrinho Pêro Pais que soube estar para breve uma segunda
tentativa de tomar Lisboa. Os cruzados estão a caminho?, espantei-me. O meu
melhor amigo já não me incluía no seu grupo de conselheiros, agora formado por
Peres Cativo, Pêro Pais e o arcebispo João Peculiar. Tantos anos de lealdade
haviam terminado sem uma explicação razoável. Teria sido o novo mordomo-mor, um
galego, a colocar-me de fora? Ou o arcebispo de Braga determinara o meu
afastamento? Foi Chamoa quem finalmente me explicou as razões da distância
real: dona Mafalda não gosta de vós! Desde Dijon que antipatizara com a rainha,
destinando-lhe apenas frios cumprimentos. Agora, pagava o preço: para acalmar a
esposa, o rei de Portugal afastara-me. Descansai, Lourenço Viegas, não sois o
único que a francesa abomina!, garantiu-me a minha cunhada». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
Cortesia da
CasadasLetras/JDACT