A
Criada do conde Henrique. 1147
Coimbra,
Outubro de 1147
«Queridos
filhos e netos, para vos contar como Chamoa desvendou os intrincados meandros da
intriga
de Compostela é necessário recuar aos últimos dias de Agosto, a uma manhã
em que a cidade de Coimbra acordou muito quente e Chamoa também. Se, em Lisboa,
os soldados sofriam sem mulheres, a ela custava-lhe a ausência de Afonso
Henriques e de Mem. Um era o seu rei, o outro o amigo. A arder de carência,
Chamoa concluiu que só permanecia na corte para proteger os seus dois filhos reais
e Pêro Pais. Por isso aqui estou, a aturar a minha nova amiga.
Em Coimbra e partido o rei, Mafalda
da Sabóia anulara a rivalidade ciumenta e as duas passavam horas juntas. Quase todos
os dias, a rainha ia rezar à Sé, e Chamoa acompanhava-a, sem saber bem porquê.
Nunca fora de muitas rezas e embirrava com o cheiro a incenso das igrejas e com
os cantos dolentes dos padres.
Não são bem homens, nem olham para
mim.
Naquela acalorada manhã, só lhe apetecia
pecar. Sentia falta do cheiro de um macho, de mãos duras que a afagassem. Suspirou
e divagou até o seu espírito aterrar na intriga de Compostela. Um beco sem
saída. Ninguém sabia nada, a não ser... De repente, estremeceu. O que lhe havia
dito Afonso VII, no último Natal?
Podeis sempre visitar-me em Toledo,
no final do Verão…
O coração dela acelerou. E se fosse
lá dar-se ao imperador? Anos antes, em Zamora, estivera quase a fazê-lo e, em
Compostela, o primo direito de Afonso Henriques voltara a mostrar-se
interessado. Nunca a filhara, mas sempre sonhara com isso...
É desta!
Saltou da cama invadida por uma energia
imparável, juntou roupas numas sacas e chamou dois dos seus filhos, o mais novo
dos três de Paio Soares e o que tivera de Mem Tougues. Mandou-os irem aprontar três
cavalos e só a dona Justa explicou aonde iam. A Toledo?, espantou-se a ama. Nossa
Senhora! Chamoa viu-a benzer-se, como se ela fosse ao inferno, mas logo a tranquilizou.
Estivera presa em masmorras, nada lhe metia medo. Só não queria que a rainha soubesse
do seu paradeiro. Dizei à francesa que fui a Tui, visitar a minha mãe. Sem hesitar,
correu na direcção das cavalariças e cavalgou para norte com os dois filhos, a
caminho de Viseu, onde tomaram a estrada que os levou a Salamanca, depois a Ávila
e por fim a Toledo. A viagem demorou duas semanas e a sorte bafejou Chamoa, ao
chegar à capital do império hispânico. Um único dia de atraso e Afonso VII teria
partido para Almeria sem a ver.
Virgem Santíssima, será que me recebe?
Na hospedaria onde se instalaram,
Chamoa vestiu uma bela dalmática azul-clara, penteou a farta cabeleira loira e perfumou-se.
Continuava muito bela e sabia-o, mas Afonso VII já se desinteressara dela uma
vez. Teria de usar todas as suas armas.
Quando me empenho, nenhum me resiste.
Mal entrou no salão do rei dos Cinco
Reinos, sentiu nos olhos deste a flâmula do macho acesa. A rainha leonesa estava
fora, em Sahágun, a rezar pela vitória em Almeria. Ele podia tomá-la. A que
devo a visita?, perguntou o imperador. Chamoa justificou-se: há muito que tinham
pendente um encontro, que infelizmente nunca se concretizara. Porém, Afonso VII
era uma águia fina e percebeu porque ela ali viera. Sois mesmo curiosa..., murmurou.
Jantaram primeiro, beberam vinho aragonês e depois o imperador conduziu-a até à
cama, onde a despiu, a beijou e a tomou. E ela deu-se, para que ele se sentisse
grandioso, mas sobretudo para que lhe contasse o que queria saber. Vamos a isso...,
anunciou Afonso VII. Sentaram-se, nus, em cima dos lençóis e, quando Chamoa lhe
perguntou sobre a troca de Afonso Henriques por outra criança, o imperador de Leão
recuou quarenta anos, até à data em que morrera o seu pai, Raimundo da
Borgonha. Como muitas vezes acontece, a viúva desvairou-se... De comportamento
errático, dizia-se que a irrequieta dona Urraca desconfiava até da própria sombra,
mas era a tendência para a devassidão que não a recomendava. Falecido o marido,
coleccionava amantes , para grande incómodo do pai dela, o imperador Afonso VI.
Meu avô e também de Afonso Henriques, lembrou Afonso VII.
Tanta balbúrdia na cama deu mau resultado.
Certo dia, dona Urraca apresentou-se em Astorga grávida. Temendo que o pai a
expulsasse de Toledo, decidira refugiar-se num castelo do único homem em quem confiava:
o conde Henrique, marido da sua irmã dona Teresa. Perante a cara pasmada de Chamoa,
Afonso VII contou que o amável conde prometera manter sigilo absoluto do
pecadilho da cunhada. Aliás, meses depois, quando a criança nasceu, o bom do conde
Henrique retornou a Astorga para solucionar o sarilho, mas espantou-se com a crueldade
de dona Urraca». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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