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«(…) Vozes amigas dizem-me que
Afonso VII anda a espalhar um boato pela península..., murmurou o patrono dos templários.
Reparei que meu pai empalideceu. A seu lado, João Peculiar, mais frio e sempre
mais preparado para as torpezas humanas, contou o que sabíamos sobre a
maliciosa intriga de Compostela. Foi a mãe dele, dona Urraca, quem
inventou essa trapaça, resmungou Bernardo de Claraval. Mais por temor do que
por lucidez! Fosse como fosse, a ressurreição da tramóia era perigosa, uma
mácula no nosso rei, uma perda de legitimidade que iria diminuí-lo, impedindo Portugal
de nascer como reino. Temos de combater tamanha safadeza, comentou Bernardo de
Claraval. Cada um à sua maneira! Uma desagradável aflição assaltou-me, pois notei
os olhos do abade de Claraval pousados em mim. Com um tom frio, o patrono dos templários
questionou meu pai: este é o primeiro dos vossos filhos?
Egas Moniz confirmou, com um aceno
de cabeça, mas senti-me na obrigação de acrescentar uma informação mais precisa.
Sou quase um ano mais velho do que Afonso Henriques. Contudo, o abade nada me disse,
perguntando antes a meu pai: é verdade que Martinho de Soure foi padre no Mosteiro
de Cárquere? Meu pai confirmou que, aquando jovem, o pároco professara naquela localidade.
Só anos mais tarde rumara a Coimbra, onde se integrara no cabido da Sé até ser nomeado
prior de Soure, vila onde ainda ministrava sacramentos, acompanhando a Ordem do
Templo. Devíamos falar com ele mal cheguemos a Portugal, murmurei de súbito. Afonso
VII disse a Chamoa que o padre Martinho de Soure conhecia um segredo do conde Henrique...
Bernardo de Claraval franziu a testa,
intrigado, mas meu pai enervou-se, alegando que a minha cunhada não era de fiar.
Faria de tudo para chegar a rainha, mas não possuía nem carácter, nem reputação
intocável, para ascender a tal estatuto. Essa mulher é uma trapalhona!, rematou
Egas Moniz. Em breve ocupará o lugar secundário que merece! O abade de Cluny olhou-o
de esguelha, como se assim o avisasse do que esperava dele, e acrescentou que iria
escrever uma missiva ao padre Martinho de Soure. Se ele sabe de algo que nos ilumine,
terá de o revelar! Egas Moniz recordou então que o pároco de Soure fora o último
confessor do conde Henrique, em Astorga. Sentindo a morte a chegar, o pai de
Afonso Henriques mandara-o chamar. Mas, lembrou o meu progenitor com uma voz
tensa e profunda, uma confissão era um segredo entre o padre e o pecador, nada transpirara
dela. Enquanto o escutava, o abade de Cluny e Cister permaneceu preocupado, como
se algo lhe pesasse na alma. E no final libertou uma frase misteriosa, que me gelou
o sangue nas veias. Todos os homens têm segredos. O conde Henrique também os tinha.
Durante a viagem de regresso a Portugal,
uma dolorosa e fria dúvida percorreu a minha alma. Saberia Egas Moniz mais do
que dizia? Seria possível que aqueles homens, todos mais velhos e experientes do
que eu, considerassem que alguns segredos dos pais não deviam tornar-se conhecidos
dos filhos? E porque perguntara Bernardo de Claraval se eu era o filho mais velho
de meu pai? Tê-lo-ia feito por mera curiosidade, ou queria certificar-se de que
estava perante o outro envolvido na suposta troca de crianças? Meus queridos filhos
e netos, foi a partir desta viagem que a minha sólida negação interior daquela historieta
aberrante sofreu um fatal abalo. A intriga de Compostela iniciou o seu sinistro
caminho dentro de mim, perturbando-me e desequilibrando-me. Assim começou o meu
tormento, a minha via-sacra». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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