Coimbra.
Julho de 1117
«(…) O antigo alferes do conde
Henrique e de dona Teresa tinha-se afastado da corte do Condado Portucalense
depois da morte do conde, com receio da fúria de dona Urraca, e vivia agora
pacatamente nas suas terras, na Maia. Dona Teresa, que nos últimos anos se
aproximara da família Trava, substituíra-o pelo marido Bermudo, uma nulidade em
questões de armas, e já se dizia que era Fernão, o irmão mais novo, quem
comandava verdadeiramente as vontades da rainha. A Raimunda ouviu as criadas de
dona Teresa cochicharem. O Fernão entra no quarto, mas o Bermudo fica à porta,
contou Ermígio. Egas indignou-se! O que iriam pensar Paio Mendes, arcebispo de
Braga, ou mesmo Teotónio, prior de Viseu? A imprudência e o desregramento de
dona Teresa só podiam ter consequências nefastas para o Condado! Contudo, meu
tio Ermígio abanou a cabeça: talvez não... Dizem que o Fernão é mais hábil do
que o irmão. Parece que foi dele a ideia de envenenar as águas levadas aos mouros.
Ao ouvi-lo, seu irmão ainda se enervou mais: se o plano resultar, Fernão Trava
será visto como o salvador de Coimbra, e dona Teresa nunca mais o larga! Inesperadamente,
uma trombeta soou no ar da manhã. Egas e Ermígio Moniz estacaram de imediato e
olharam para a tenda do califa Ali Yusuf. O que era aquilo, um toque de
retirada?
Coimbra. Julho de 1117
Afonso Henriques contou-me que,
depois daquele grito de revolta, desceu a escada interior da torre do castelo,
entrando na habitação principal da alcáçova, onde se cruzou com Dordia, minha
mãe. Sentada num banco corrido, ela parecia inanimada, com as pálpebras
cerradas, quase sem respirar, mas deve ter ouvido o som dos pés dele no chão,
pois abriu os olhos. Inquieto, o meu melhor amigo deu-lhe os bons-dias. Ela
exigiu um beijo, mas nem era necessário, ele ia dá-lo na mesma. Abraçou-a e
sentiu-a sem forças, nem mexia os braços. Avisou que ia brincar connosco. Ide
andando, já lá vou ter com vocês, murmurou Dordia. Todos sabíamos que ela não iria,
mas tentávamos acreditar no contrário. Constrangido por a ver assim, o meu
amigo forçou um sorriso e depois largou a correr. Saiu para o varandim, desceu
as escadas de madeira a grande velocidade e avançou pelo pátio, sem reparar nas
duas raparigas mouras, Zaida e Fátima, que se encontravam uns metros à sua direita,
junto à mãe delas, Zulmira.
Eu estava no centro do terreiro
com meu irmão Afonso Viegas e esticava um arco. O príncipe viu-me apontar a flecha
a um boneco de feno, uma imitação primária de um mouro, com um miserável pano
enrolado e colocado no topo, fingindo um turbante. Mata-o!, gritou o meu irmão.
Eu tinha nove anos e jeito para aquilo. Mantive o arco tenso e depois libertei
a corda. A flecha silvou no ar e acertou na barriga do espantalho. Afonso
Viegas, de oito anos, saudou, entusiasmado, a minha pontaria, enquanto o meu
outro irmão, Soeiro Viegas, batia palmas. Ao lado dele estava uma rapariga, com
os mesmos sete anos que Soeiro, chamada Raimunda, filha ilegítima de meu tio
Ermígio, que não procriara no seu único casamento religioso.
Morena, magricela, com o cabelo
curto, a minha prima parecia um dos irmãos Viegas. Era uma menina tímida, mas
muito engenhosa. Sempre encostada pelos cantos, dava tão pouco nas vistas que
meu pai e meu tio haviam descoberto nela uma utilidade inesperada: escutar
conversas no castelo e reportá-las a eles. A única perdição dela era o meu
melhor amigo: ficava fascinada na presença de Afonso Henriques. Mal o viu, o
seu sorriso abriu-se. Para sua sorte, ninguém lhe ligava ou suspeitava daquela
profunda afeição. Quando o príncipe chegou junto de mim, entreguei-lhe o arco, cedendo-lhe
a vez, e enquanto ele colocava uma flecha ouvi uma previsão maldosa nas minhas
costas. A feroz Fátima era sempre assim, e sempre seria, ao longo da vida. Ides
falhar! Afonso Henriques examinou Fátima, com a irmã mais nova à ilharga. A
moura desafiava-o com palavras agoirentas. Orgulhoso, meu irmão Afonso Viegas
declarou, sem olhar para as raparigas: é um mouro e já tem uma flecha espetada
na barriga.
O príncipe, levantando o arco,
acrescentou com pomposa seriedade: é como vão ficar os que tentarem entrar em
Coimbra! Apontou a flecha ao boneco de palha, mas no instante em que ia disparar
ouviu-se de novo a voz irritante de Fátima: ides falhar! A repetida profecia
gerou uma ligeira inquietação no príncipe, que estremeceu. Quando largou a
corda, o arco já se desviara ligeiramente, fazendo com que a flecha, cortando o
ar, se tenha dirigido em demasia para a direita, falhando o alvo por uma mínima
distância, e seguindo em frente até aterrar uma dezena de metros atrás do
boneco.
Fátima gritou de satisfação, mas
ninguém esperava a reacção intempestiva de Afonso Henriques. Atirou com o arco
ao chão, colérico, e desatou a correr na direcção dela, gritando: estúpida, a
culpa é vossa! A irmã Zaida deu um passo atrás, temendo a investida do rapaz. Mas
Fátima não se mexeu e insistiu na provocação: nem num mouro de palha acertais,
príncipe estúpido! Afonso Henriques carregou sobre ela e levantou a mão para lhe
dar um murro. No entanto, Fátima foi mais rápida e, um instante antes de ser
atingida, desviou-se para a direita, deixando a sua perna esquerda esticada, de
maneira que Afonso Henriques tropeçasse nela, desequilibrando-se e caindo». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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