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«(…) Os botins tinham cumprido bem o
primeiro percurso. Comprara uns de cano alto, para evitar que pedregulhos e
grãos de areia entrassem dentro deles. Tomara também a precaução de escolher um
número maior e usar duas meias, dessas de corrida, para que o pé ficasse
apoiado sobre um acolchoado e não sofresse tanto. Deixou para pôr a mochila nas
costas quando estivesse lá fora. Conferiu o dinheiro, os documentos e saiu. Mas
o que será que aconteceu? Notou que alguma coisa agitava o ambiente e alguns
peregrinos andavam apressados, enquanto outros estavam parados, como se não
pudessem ir embora. O que poderia ter acontecido? Viaturas da polícia ocupavam
o grande pátio do mosteiro e, enquanto ele hesitava se ia ao bar tomar café, um
polícia aproximou-se: o senhor não pode sair sem prestar depoimento. Depoimento?
O que houve? O polícia não deu detalhes, mas deixou-o ir até o bar ao lado da
Colegiata, e ali soube que o padre Augusto, que participara da missa da noite
anterior, havia sido assassinado naquela madrugada. Alguém entrara no quarto
dele e o matara. Tomou café e esperou pacientemente, porque compreendia a
gravidade da situação. Mais um crime. Agora um padre, pensava, absorto. Depois de quase duas
horas de espera, foi conduzido a uma sala, onde se encontravam um detective, um
oficial militar graduado e o escrivão concentrado num laptop. Ao lado deles estava o abade,
superior da irmandade. O oficial pediu os seus documentos e conferiu o nome que
estava no passaporte de peregrino, que a Associação dos Peregrinos de Santiago
de Compostela no Brasil lhe havia fornecido, com o passaporte oficial. Maurício
Costa Silva. Brasileiro.
Em
seguida, apontou para o cajado que havia matado o padre: obviamente, o senhor
não vai dizer que esse cajado lhe pertence, mas por acaso teve a oportunidade
de ver alguém com ele? Digo, no trajecto de ontem, vindo para cá? Sabemos que
na hora do crime o senhor estava dormindo e não poderia tê-lo praticado, mas
talvez pudesse ajudar-nos a identificar o dono desse cajado. Estranha maneira
de começar uma investigação, pensou, enquanto lembrava vagamente de um
peregrino alto e forte que passara por ele no alto dos Pirenéus. Não, senhor.
Nunca vi esse cajado antes, mas isso aí não é um cajado, é uma arma. Quem está
sendo interrogado é o senhor. Limite-se a responder às perguntas. Foi uma
censura ríspida, mas na verdade era melhor mesmo ficar quieto. Estava começando
o Caminho e não queria problemas com as autoridades de outro país. Lembrou-se
da sensação de ambiente fúnebre, que tivera ao entrar em Roncesvalles, e esta
já era a terceira morte desde que saíra de Saint-Jean-Pied-de-Port, porém, foi
tomado por um medo inoportuno.
Desculpe-me
por perguntar, mas será que esse crime não estaria ligado ao outro, de ontem,
na subida dos Pirenéus? Devia ter mordido os lábios e ficado quieto, mas já era
tarde. O oficial ia novamente reagir do alto da sua autoridade, quando o detective
o interrompeu: houve um acidente ontem na subida dos Pirenéus. Um homem e uma
menina morreram. Disso, nós estamos informados. Mas de onde tirou a conclusão
de que aquele acidente foi outro crime? E que conexão tem aquele episódio com o
assassinato do padre?
Imaginou
a ciumeira entre a polícia francesa e a espanhola ali na fronteira. Os polícias
espanhóis estavam com receio de pedir informações do lado de lá dos Pirenéus,
sem um motivo razoável. Fosse isso, a polícia espanhola não sabia exatacmente o
que ocorrera com o homem do burrico e a menina. O mais sensato era sair logo
dali e não se envolver em nada, mas o instinto lhe dizia que precisava saber
mais coisas. Não podia ser mera coincidência ter iniciado o Caminho e no mesmo
dia ocorrerem três crimes. Talvez fosse melhor esclarecer essas dúvidas. Desculpe
mais uma vez, mas não me parece que o assassino tenha feito esse cajado apenas
para matar um padre dormindo.
É
uma arma apropriada para alvos mais fortes. Pelo que sei, o homem morto nos
Pirenéus vinha subindo o morro puxando um burrico com a filha montada nele.
Talvez valesse a pena perguntar à polícia francesa. Tenho a impressão de que a
perna do burrico foi cortada com esse cajado. Desculpem-me, mas acho que não
foi acidente. O detective olhou-o por uns instantes e perguntou: pois volto a
perguntar: de onde o senhor tirou essa conclusão? Maurício não quis dizer que o
espanhol o havia cumprimentado na saída de Saint-Jean-Pied-de-Port e parecia um
atleta, com condições de oferecer resistência ao assassino, mas deu uma
explicação: aquele burrico já devia estar acostumado com o Caminho, assim como
o homem. Vi quando a polícia veio buscar a esposa dele, lá no alto dos Pirenéus.
Era uma mulher jovem. Imagino que ele devia ser apenas um pouco mais velho que
ela e, portanto, ainda novo. Além disso, a mulher subiu o morro como se fosse
uma rotina. Era gente acostumada a andar.
O
abade sentiu um arrepio como se a brisa fria das montanhas tivesse entrado
naquela sala para testemunhar mais duas mortes.
Queiram desculpar-me novamente, mas acho que uma investigação está
ligada à outra. Pretendo seguir o Caminho e os senhores me encontrarão nos
albergues, se precisarem de mim. O oficial engoliu a isca e consultou o detective: inspetor
Sanchez, por mim o depoimento do Sr. Maurício já é suficiente. O detective
balançou a cabeça concordando, mas não parecia satisfeito. O oficial deu,
porém, o interrogatório por encerrado: não
vamos precisar do senhor. Assine o Termo de Declarações. Nós já temos a sua
identificação e o encontraremos onde estiver e quando quisermos. O escrivão completou o Termo de Declarações que ele assinou.
Voltou- se para a saída, mas um novo temor levou-o a comentar: é esquisito que ele tenha deixado a sua arma. O oficial pareceu ofendido e falou no mesmo tom ríspido: sabemos disso. Não precisa dizer o óbvio. Não parecia, porém, tão óbvio para o detective: por
favor, comandante Perez! Gostaria de saber o que o Sr. Maurício quis dizer com
isso. Percebeu que o detective já o tratava com respeito. Não era apenas o deponente ou testemunha, mas o Sr.
Maurício. Ele deixou o cajado, porque
poderia identificá-lo. Isso significa que ou ele completou o trabalho e
desapareceu, ou continua no Caminho, disfarçado. Penso que haverá mais mortes.
Ele pode ter uma missão, que não completou. O abade, quieto até então, exclamou
apavorado: é o demónio. Ele
matará mais sacerdotes para impedir a assistência aos peregrinos». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra,
Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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