terça-feira, 31 de julho de 2012

Recordar. O meu Dia. Poesia. «… Prossegue a música, e eis na minha infância de repente entre mim e o maestro, muro branco, vai e vem a bola, ora um cão verde, ora um cavalo azul com um jockey amarelo…»



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In Memoriam de MLAC e JLT

O Maestro Sacode a Batuta

O maestro sacode a batuta,
  alânguida e triste a música rompe ...

Lembra-me a minha infância, aquele dia
em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
  odeslizar dum cão verde, e do outro lado
um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...

Prossegue a música, e eis na minha infância
de repente entre mim e o maestro, muro branco,
vai e vem a bola, ora um cão verde,
ora um cavalo azul com um jockey amarelo...

Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)

Atiro-a de encontra à minha infância e ela
atravessa o teatro todo que está aos meus pés
  abrincar com um jockey amarelo e um cão verde
  eum cavalo azul que aparece por cima do muro
do meu quintal... E a música atira com bolas
  à minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
de batuta e rotações confusas de cães verdes
  ecavalos azuis e jockeys amarelos ...

Todo o teatro é um muro branco de música
por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...

E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
com orquestras a tocar música,
para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
  eo homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...

E a música cessa como um muro que desaba,
  a bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
  e do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
  e curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"


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A Bela Poesia. O meu Dia. Recordar. «… Chamo aos gritos por ti, não me respondes. Beijo-te as mãos e o rosto, sinto frio. Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes por detrás do terror deste vazio»



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In Memoriam de MLAC e JLT

Testamento do Poeta

Todo esse vosso esfoo é vão, amigos:
Nnão sou dos que se aceita... a não ser mortos.
Demais, já desisti de quaisquer portos;
o peço a vossa esmola de mendigos.

O mesmo vos direi, sonhos antigos
de amor! olhos nos meus outrora absortos!
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,
que fostes o melhor dos meus pascigos!

E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
que tudo e todos vejo reduzidos,
a ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.

Para reaver, porém, todo o Universo,
a amar! e crer! e achar meus mil sentidos!....
Basta-me o gesto de contar um verso.

José Régio, in 'Poemas de Deus e do Diabo'


Mãe
Mãe:
que desgraça na vida aconteceu,
que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
cansada de palavras e ternura,
assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in 'Diário IV'

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Poesia. Recordações. O meu Dia. «…minha presença rútila e curiosa arde sombria como um arder de palha, curiosa apenas de saber se goza o voar das cinzas quando o vento calha»



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In Memoriam de MLAC e JLT

Ser

Cansada expectativa tão ansiosa
que ser só eu na minha vida espalha!
Na longa noite em que se tece a malha
do que não serei nunca, fervorosa.

Minha presença rútila e curiosa
arde sombria como um arder de palha,
curiosa apenas de saber se goza
o voar das cinzas quando o vento calha.

Lá onde o levantá-las é verdade.
Inutilmente se mistura tudo,
que a mesma ansiedade, já esquecida,

de novo recomeça. Mas quem há-de
contrariá-la? Eu não, que não me iludo:
viver é isto, quando se é só vida.

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'


Bom e Expressivo

Acaba mal o teu verso,
mas fá-lo com um desígnio:
é um mal que não é mal,
é lutar contra o bonito.

Vai-me a essas rimas que
tão bem desfecham e que
são o pão de ló dos tolos
e torce-lhes o pescoço,

tal como o outro pedia
se fizesse à eloquência,
e se houver um vossa excelência
que grite: — Não é poesia!,

Diz-lhe que não, que não é,
que é topada, lixa três,
serração, vidro moído,
papel que se rasga ou pedra que rola na pedra...

Mas também da rima «em cheio»
poderás tirar partido,
que a regra é não haver regra,

a não ser a de cada um,
com sua rima, seu ritmo,
não fazer bom e bonito,
mas fazer bom e expressivo...

Alexandre O'Neill, in 'De Ombro na Ombreira'

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segunda-feira, 30 de julho de 2012

Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África séculos XV-XX. Isabel Castro Henriques. «Trata-se de resto de uma velha tradição que, face aos novos homens, [...] leva os europeus a classificá-los como grupos humanos, sim, mas sem civilização; sem fé, isto é sem Deus; sem rei, isto é sem Estado, sem autoridade e sem território organizado; sem lei, isto é sem regras fixando a norma social»


Trabalhadores contratados de origem angolana, em S. Tomé. Maximiliano Lopes
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Construção da História. Sedimentação das Culturas Coloniais.
«Como qualquer discurso histórico, o discurso dos historiadores que se ocupam da África, autóctones ou estrangeiros, está sujeito a revisões permanentes. A História é formada por definitivos inevitavelmente provisórios.
A revisão do lugar da África no campo da sua própria história e da história universal conseguiu fazer de Hegel um pensador arcaico, tão inaceitáveis são as considerações que o filósofo alemão consagra a uma África mítica, a África dos preconceitos esclavagistas europeus. E se é certo que Hegel fora anunciado por Kant, convém assinalar aqui a importância das modificações introduzidas no campo da história. Como tantos outros historiadores especializados na história do continente e das suas relações com o mundo, pude assegurar a passagem da negatividade obscura de Kant e de Hegel, à compreensão dinâmica marcando os diferentes passos da construção da história pelos africanos .Tarefa nem sempre fácil dado o peso dos estereótipos negativos: a desvalorização do homem africano não podia deixar de levar à desvalorização dos seus produtos civilizacionais e da sua história.

Sem fé, sem rei, sem lei.
O corte epistemológico registado na história das espécies, associado ao lento reconhecimento da “inteligência africana”, permitiu superar as maneiras de ver o africano que podemos encontrar em Kant, na sua “Antropologia do ponto de vista pragmático”, e em Hegel, sobretudo em “A Razão na História”. Os dois pensadores pertencem ainda ao quadro que não consegue distinguir os ‘homens silvestres’ e os grandes macacos, como aparece de maneira decidida num soneto injurioso que serve a Bocage para ‘africanizar’ o mulato brasileiro, o padre Domingos Caldas Barbosa, ‘o trovista Caldas’.
Esta maneira de recusar aos africanos a sociabilidade, torna-os coisas da floresta, como o continuam a ser na filmografia de Tarzan, incapazes de definir e de urbanizar os espaços. Esta impotência cultural explica por sua vez a ausência de tecido urbano, quando não pode ser completamente separado do macaco. Ora os macacos vivem em bandos, mas não dispõem de nenhum instrumento político, no sentido que lhe é dado pelo Aristóteles de “As Políticas”.
Trata-se de resto de uma velha tradição que, face aos novos homens, africanos, americanos, asiáticos, leva os europeus a classificá-los como grupos humanos, sim, mas sem civilização; sem fé, isto é sem Deus; sem rei, isto é sem Estado, sem autoridade e sem território organizado; sem lei, isto é sem regras fixando a norma social. A ausência de aparelho político é clamorosa, como se pode de resto verificar no século XVI no texto que o jesuíta Josef Acosta consagrou à “Historia natural y moral de las Indias”. O comparatismo do jesuíta permite definir os valores de cada continente, assegurando a nítida superioridade dos brancos, embora se reconheçam algumas qualidades aos asiáticos.
A África e os africanos foram correntemente pensados como um continente povoado por populações que não possuíam a menor noção do poder político e ainda menos do Estado.

NOTA: Se os portugueses começam por prestar alguma atenção à história do reino do Congo, tal se deve a uma ilusão que levou os primeiros portugueses a sobrevalorizar a estrutura política congolesa; tal situação conheceu cedo uma séria revisão. Primeiro, o rei Afonso protestou contra o facto de os portugueses lhe não fornecerem barcos capazes de lhe permitir a navegação no alto mar, pois não dispunha das técnicas necessárias para o fazer; depois, contra o facto de tornarem escrava uma parte da população congolesa, incluindo membros dos grupos dominantes, acaso parentes do próprio rei. Ou seja, o reconhecimento da história interna, não obriga a enxertá-la na história universal.

E sabendo nós a articulação que sempre se estabelece entre as soluções políticas e a própria história, podemos verificar a singular associação destas duas negações. Só em 1940,isto é, em plena II Guerra Mundial, apareceu em Londres o volume dirigido por Evans-Pritchard e Meyer Fortes, consagrado aos sistemas políticos africanos». In Isabel Castro Henriques, Os Pilares da Diferença, Relações Portugal-África séculos XV-XX, Caleidoscópio, Ciências Sociais e Humanas, Estudos de História, 2004, ISBN 972-8801-31-9.

Cortesia de Caleidoscópio/JDACT

O Confronto do Olhar. O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha. «É fundamental distinguir-se entre a percepção do outro e o conhecimento do outro. A primeira é imediata e irredutível, a segunda muito mais lenta, o que implica a falibilidade. O encontro origina o choque de culturas que nos transporta para o problema da singularidade e da origem da civilização europeia»


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«Pêro Vaz de Caminha, “Carta do Achamento do Brasil” afirma que não conheciam a agricultura. A literatura preocupa-se em representar o real, segundo Barthes, real que não é representável, mas apenas demonstrável. Mas em Caminha as palavras têm sabor; saber e sabor têm a mesma etimologia em latim (sapere=ter gosto; exalar um cheiro, um odor; fig.: conhecer, compreender). É de facto necessário que as palavras tenham o máximo de sabor possível.
O Atlântico era a grande via que possibilitava este encontro dos povos. Não será de mais recordar a bela meditação de Braudel sobre quanto de aventura humana se inscreve na história dos mares. Com o Mediterrâneo de outrora, o Atlântico tornou-se o grande veículo das civilizações e das políticas, das técnicas e economias (Fernand Braudel, ‘O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe I’).
Ele sincroniza a vida dos povos e dos estados que tocam o seu espaço, como também das nações e civilizações que nele integram. E o agente silencioso de uma civilização de conjunto que liga o ocidente da Europa às Américas e que, quaisquer que sejam as diferenças, os obstáculos ou mesmo as vontades manifestadas, as impede de desligar os seus destinos.

O Encontro dos Povos. A palavra encontro vem do latim (incontra=em contra): é o choque o efeito de olhar para outro homem de um modo mais ou menos hostil. Encontrar-se com o outro homem começou sendo um ‘sentir que o outro está contra mim’. É curioso que encontro é um nome de uma ave brasileira, também conhecida por soldado.
Será que o acto de encontrar o outro, ou melhor, com o outro, foi uma ameaça para ambos, algo que nos pôs mutuamente ‘em contra’? Encontro é constituído pela categoria ontológica da-relação, no sentido de Tomás de Aquino, ‘hábito entre duas coisas, segundo a qual uma delas convém realmente à outra’. Para Pedro Entralgo, três são os modos principais do encontro e da relação:
  • o outro vai ser para mim um objecto, relação de objectividade;
  • o outro vai ser para mim, e vice-versa, uma pessoa, relação de personalidade;
  • eu vou ser para o outro, e o outro vai ser para mim, se me corresponde, um próximo, relação de proximidade.
É fundamental distinguir-se entre a percepção do outro e o conhecimento do outro. A primeira é imediata e irredutível, a segunda muito mais lenta, o que implica a falibilidade. O encontro origina o choque de culturas que nos transporta para o problema da singularidade e da origem da civilização europeia. Este nem sempre conduziu a lutas sangrentas e guerras devastadoras, pôde constituir uma oportunidade de desenvolvimento. A própria civilização europeia resultou de um choque de culturas, das culturas do Mediterrâneo oriental, as obras literárias mais antigas dos gregos que chegaram até nós, ‘Ilíada’ e a ‘Odisseia’, são testemunhos eloquentes desse choque.
Em relação à singularidade de cada cultura refira-se o que escreveu Heródoto, (‘Histórias III’):
  • Durante o seu reinado chamou um dia Dario os gregos que estavam consigo e perguntou-lhes por que preço estavam dispostos a comer os próprios pais após a sua morte. Responderam-lhe que nada, mas absolutamente nada, os poderia levar a fazer tal coisa. Então Dario chamou os Kallacios, um povo da Índia que tinha por hábito comer os pais, e perguntou-lhes, na presença dos gregos, que tinham à sua disposição um intérprete, por que preço aceitariam que os cadáveres dos pais fossem incinerados. Gritaram horrorizados e rogaram-lhe que não proferisse sequer algo de tão profano. O mundo é precisamente isso.
Através deste episódio, Heródoto queria que os seus contemporâneos gregos respeitassem os costumes estrangeiros e que se tornassem críticos perante aquilo que se lhes afigurava evidente.
Com as navegações, Portugal transformava-se num ‘verdadeiro museu etnográfico onde a Europa podia vir instruir-se dos usos e costumes, das características das raças até agora ignoradas, mesmo pelos maiores geógrafos’. Para Alfredo Margarido, ‘o corte epistemológico dos séculos XV e XVI introduz a diversidade do Outro, uma problemática que as sociedades europeias ainda não conseguiram nem integrar nem superar’. A metafísica ocidental impossibilitou a compreensão do Ser construindo simultaneamente a modernidade e colocando a subjectividade como seu princípio». In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.


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Cortesia de Caminho/JDACT

domingo, 29 de julho de 2012

As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura. Luís Albuquerque. «Enquanto os Aragoneses e os Castelhanos asseguravam o seu poder sobre aquelas ilhas, (Canárias) os Portugueses empreendiam viagens em direcção ao sul, ao longo da costa africana, até então desconhecida»


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A descoberta do mundo pelos Ibéricos
«O grande surto do descobrimento de novas terras desconhecidas na Idade Média começou no século XIV. Italianos, maiorquinos, aragoneses e talvez mesmo portugueses visitaram várias vezes as ilhas Canárias, onde, segundo algumas lendas muito antigas, reinava uma felicidade quase absoluta. No entanto, o objectivo dos primeiros navegadores que alcançaram as Canárias estava bem longe de ser a conquista da felicidade, nessas ilhas que se pensava serem tranquilas, com um clima ameno e ricas de flores e de frutos. A realidade era bem diferente; encontravam-se terras muito pobres e habitadas por gente miserável. Apesar disso, insistiu-se em visitar as Canárias porque:
  • Aí se podiam, pelo menos, adquirir alguns vegetais utilizados na indústria têxtil do Norte da Europa;
  • Era muitas vezes possível, através de uma luta desigual, fazer prisioneiros entre os autóctones, depois vendidos como escravos na Europa, onde eram sobretudo utilizados nos trabalhos agrícolas;
  • E, por último, pensava-se na possibilidade de ocupar algumas das ilhas, a fim de serem colonizadas.
No que respeita ao projecto de cristianização, chegou-se, no caso das Canárias, até à indicação dos bispos; e a ocupação foi pela primeira vez projectada por Luís de la Cerda; duas tentativas sem qualquer sucesso, deve ser desde já dito. Aos padres deparou-se uma forte resistência por parte dos indígenas; o mesmo sucedeu com la Cerda, que se proclamava rei das Canárias, mas não recebeu, para tornar efectivo o reinado, qualquer ajuda dos reis da Península, em particular do rei de Portugal.
No início do século XV, a tentativa de ocupação levada a cabo pelo normando Jean Béthencourt teve melhor sorte; o expedicionário instalou-se numa das ilhas e conseguiu exercer um fraco domínio sob uma parte do arquipélago. Esta aventura deu origem à primeira crónica que possuímos sobre as Canárias; o célebre texto, denominado ‘Le Canarien’, fornece-nos, com efeito, algumas indicações preciosas sobre a vida das ilhas nessa época tão remota.
Nas Canárias deparam-se-nos, pela primeira vez, casos de rivalidade existente entre Portugal e Castela, ou Aragão, então ainda separado de Castela. Esta rivalidade veio a aumentar e terminou com um tratado de circunstância, satisfazendo ambos os países. Para uma melhor compreensão do assunto, convém salientar que as Canárias representavam diferentes objectivos para os Portugueses e os Aragoneses:
  • Para estes últimos, o fim era a ocupação e exploração económica das ilhas;
  • Para os Portugueses, elas deveriam sobretudo constituir pontos de apoio das viagens ao longo da costa africana ao sul do cabo Bojador.
Quando esta estratégia portuguesa se começou a delinear, os Castelhanos e os Aragoneses estavam já instalados no arquipélago das Canárias; todas as tentativas dos Portugueses para ocupar uma das ilhas fracassaram (de uma delas há notícia concreta: deu-se durante a vida de Henrique-o-Navegador, em 1425).
Os Portugueses apelaram para as leis reconhecidas pelos países nessa época, defendendo o seu direito à ocupação das ilhas sob pretexto da sua proximidade geográfica com Portugal, mas tais argumentos não foram aceites no Concílio de Basileia, em 1435.
Por outro lado, é forçoso reconhecer que os direitos dos Aragoneses se viram ameaçados pela presença de Béthencourt.
Passemos agora um pouco adiante para relembrar apenas as fases mais significativas dos Descobrimentos. Enquanto os Aragoneses e os Castelhanos asseguravam o seu poder sobre aquelas ilhas, os Portugueses empreendiam viagens em direcção ao sul, ao longo da costa africana, até então desconhecida.
Por outro lado, tem de se reconhecer que por então só se aventuravam ao longo da linha costeira, e apenas à luz do dia, como relata Cadamosto. Só em 1446, aproximadamente, se iniciaram as tentativas de empreender a viagem de regresso pelo mar largo, com grande economia de tempo. Este facto representa um primeiro passo no conhecimento, ou, talvez melhor, na descoberta da geografia física». In Luís Albuquerque, As Navegações e a sua Projecção na Ciência e na Cultura, Gradiva, 1987.

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Cortesia de Gradiva/JDACT

O Confronto do Olhar. O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas. Séculos XV e XVI. António Luís Ferronha. «O conde de Tentúgal afirmava que o dever de um cronista ‘é mencionar o que possa reflectir crédito aos reis e aos grandes’, e esconder o resto, enquanto no entender de Góis o seu dever é não só ‘dizer o bem’ mas ‘repreender o mal’»


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‘Todos somos hóspedes e passageiros...
Que é o mundo?
É um mar infestado de corsários…’ In pa. Manuel Bernardes

‘Pela aragem se vê quem vai na carruagem’. In adágio popular

«Fomos ao encontro de outros povos e viveres culturais, nesses tempos catárticos, os das navegações (filhos da história). Tentámos analisar o seu modo de pensar e de agir: conhecemos as suas (e as nossas) dificuldades, participámos todos neste entusiasmo como uma aventura histórica e como netos de Fernão Mendes Pinto.
Esta pesquisa ética foi uma reflexão, o semiótico sobre a comunicação (signos, símbolos e interpretação) deve ser pensado na relação que se estabelece com o Outro. Saltando barreiras do tempo e do espaço, podemos agora sintetizar as atitudes mentais que tornavam o mundo menos opaco: ‘neste tempo tão novo e a nenhum outro igual’.
Tratava-se de facto de um mundo novo, diferente de um ‘outro mundo’, nos dizeres de Cadamosto. Com as navegações ibéricas, o ‘mundo torna-se pequeno’ como afirmava Cristóvão Colombo (carta raríssima de 7-7-1503), com a descoberta da sua totalidade.
Estas navegações XV e XVI envolviam a superfície da Terra, à maneira dos fenómenos físicos ou até naturais. Os portugueses chegavam e partiam com os ventos, mas a deriva atlântica fez o “Portugal memória”.
Socorremo-nos dos documentos escritos, da cartografia, iconografia, antropologia e verificámos que os documentos elaborados por aqueles homens de antanho nos revelam sobre as terras recém-contactadas uma observação e um sentido mais apurados da realidade física do que nas descrições de Portugal, mas também nos informam que esses homens não foram capazes, senão à superfície, de se abrir e dialogar com o outro, mergulhámos nas suas águas e enxugámo-nos nas páginas dos documentos.
O documento histórico não é inócuo. O Universo da palavra que é o da subjectividade esteve sujeito a várias pressões oficiais e às impostas pela própria moral da época. O exemplo demonstrativo é a chamada “Relação da 1ª Viagem à Índia”, escrita por Álvaro Velho do Barreiro. Barbosa de Machado, na “Biblioteca Lusitana”, foi o primeiro a informar das mutilações padecidas pela crónica de Damião de Góis sobre o rei Manuel I: ‘se tiraram algumas coisas que tinham causado grave desgosto ao seu autor’, frases chamadas inconvenientes à moral pública.
A censura não só fez retoques ao texto como também o substituiu, por outro diverso e mais desenvolvido. Toda esta polémica se encontra no Códice 20 958 Add no Museu Britânico, (‘Papéis/Históricos/Portugueses/1640/1700’, citado por Edgar Prestage, ‘Crítica Contemporânea da Crónica de D. Manuel de Damião de Góis’ in ‘Arquivo Histórico Português).

Para este autor, o crítico de Damião de Góis é Francisco de Melo, 2.º conde de Tentúgal. O conde de Tentúgal afirmava que o dever de um cronista ‘é mencionar o que possa reflectir crédito aos reis e aos grandes’, e esconder o resto, enquanto no entender de Góis o seu dever é não só ‘dizer o bem’ mas ‘repreender o mal’.
O conde critica, em relação ao que nos interessa:
  • No capítulo 35 sou eu que diz nele bastava para se não consentir imprimir-se este livro que hão-de ler Rainhas e Princesas, e não se devera de sofrer pôr-se nele particularidades tão sujas e desonestas... e não servem senão de ofenderem o seu mau termo de orelhas.
A parte referida é a que está sublinhada e foi riscada na edição definitiva: ‘Quando falam, parece que soluçam; andam vestidos de peles’ e “trazem suas naturas [pénis] metidas em Umas bainhas de pau muito bem obradas, que quase se parecem com as bainhas de pau em que os mareantes holandeses e os trelins trazem nas facas com que cortam a vianda”.
Damião de Góis responde que:
  • Do capítulo 36 já estava riscado o das bainhas de pau por a mim mesmo parecer mal, e o erro não é tamanho, nem os homens podem de súbito cair nas coisas, que é a causa de todos errarmos.
Podemos ainda verificar que na cartografia, l.º capítulo, o ameríndio (que não gostava de trabalhar, nos textos portugueses da época, no fundo o direito à preguiça) está em fainas relacionadas com o abate das árvores, a venda do pau-do-brasil, e por outro lado com a desmatação para a chamada agricultura,  que não exige sementes. Modo de reprodução vegetativo, com a consequente divisão sexual do trabalho». In António Luís Ferronha, O Confronto do Olhar, O encontro dos Povos na época das Navegações Portuguesas, séculos XV e XVI, Editorial Caminho, 1991, ISBN 972-21-0561-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

sábado, 28 de julho de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «… e a sua cadeira real ia para cima, alta, sobre uma alcatifa, e abaixo dele, talvez, uma cadeirita à mão direita para quem fosse de importâncias, ou aparecer sob tecto em conformidade sobre uma triunfal cadeira de rei…»


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«Às vezes chamavam-lhe o ‘Venturoso’. El-Rei, todavia, não lograva vislumbrar que ventura era a sua. Acima de tudo e de todos, o rei tinha de ser, acima de tudo e de todos, a própria ventura. Como rei não era só criatura, mas o melhor dos crentes; um ser humano virtuoso pois a sua condição dotava-o de todas as virtudes; um corpo que, por mais horrendo, deverá representar toda à beleza, pois esta manifesta o sagrado, e nada há de mais sagrado do que um rei.
Um rei... é o conjunto das qualidades próprias do seu real estado. Ele é a qualidade. O juiz supremo, pai e chefe de linhagem, senhor de sua casa e, sobretudo, senhor dos seus vassalos, o chefe militar. Na Corte, em Corte, deve manifestar seu maravilhoso régio, ser o exemplo da educação cortesã e deve cultivar, para sua sorte, a distância e a altura. Na distância está o espaço régio e do espaço régio é El-Rei o centro. No lugar onde cumpre, muito maior lugar faz El-Rei com seu olhar do que todos os oficiais e porta-maças com muito trabalho podem fazer...
El-Rei brilha, e, à distância, os outros fazem por merecer as suas sombras...
Na regra da altura, El-Rei é sempre maior. Representa a realeza, está sempre situado acima das restantes personagens que o servem… Se sai, deve ir a cavalo, e o seu cavalo sobressair. Se fica, deve aparecer em cima de estrado, el-Rei gostava de os alevantar em uma sala armada de rica tapeçaria e dossel de brocado e a sua cadeira real ia para cima, alta, sobre uma alcatifa, e abaixo dele, talvez, uma cadeirita à mão direita para quem fosse de importâncias, ou aparecer sob tecto em conformidade sobre uma triunfal cadeira de rei…
Até suas vestes devem ser as mais reais, que a ninguém possam semelhar, pois é de regra que a todos devem confundir E se el-Rei se quis já por várias vezes aforrado, só para ir a Santiago e mostrar sua humildade de peregrino (mas el-Rei a Santiago não torna, nem aforrado nem por aforrar, porque a ida sua penou tanto que as varizes bem o ressentiram), foi só então e por vontade muito sua e extrema…
Seu saimento é também para dar-se a conhecer, que é seu dever.
Como canta o poeta:

...os príncipes saíam
dias santos cavalgavam
todos seus Povos os viam
eles viam e ouviam
todos quantos lhes falavam.
Ninguém pode ser querido
de quem não é conhecido
que os olhos hão-de olhar
para o coração zÍnlr
o que tem visto e sabido.

E a verdade é que el-Rei, que só reinou por um bambúrrio de sorte de feição, já tinha antes o gosto de laurear e não era de todo desconhecido do povo, pois andava sempre na giraldinha. E depois de rei, o gosto continua.
Por estas e por outras, porque se quer espectador mas é espectáculo, o rei deve ter, como se disse, as mais belas vestiduras. E tem-nas. Sai agora, muitas vezes, em cortejo, todo aperaltado. O cortejo, quando o há e deve haver, na saída, terá de precedê-lo, anunciá-lo pelo pálio ou outro objecto que defina o ceptro, seu atributo, ocupado pelo próprio rei. Mas el-Rei, ao contrário dos que o antecederam, e embora seja esse um dos seus desígnios, nem tem grande desejo de se mostrar ao povo, tende até a isolar-se da população e a sua presença e liberalidade revela-se de preferência a um público da Corte.
El-Rei, por exemplo, foi bem alçado, alevantado em recinto ali nas bandas de Alcácer, em recinto sobrelevado, com prelados e nobreza em sua volta, havendo um clérigo para arengar por incumbência. Apesar de tanta gala e fausto, El-Rei é para lá de muito infeliz.
Para onde se virava, o espectro da morte parecia persegui-lo. E não só a morte como a virtude, a penitência, a moral deixavam-lhe marcas de sofrer. Em seus pesadelos, a morte saltava-lhe para o leito, lembrava-se de todos os que morreram, e tantos foram em seu redor, e de como lhe anunciaram a morte, em sequência de parto, de Isabel sua mulher, e de como, tendo-lhe sido dada a triste nova, a teve de a dar ele e depois, como mandam regras, se deitou no chão esbofeteando seu rosto, depenando as barbas e deitando sobre a cabeça uma capa de um seu criado se retirou para fazer grande pranto, e com ele se foram o arcebispo e o cardeal e todos os fidalgos, todos fazendo seus grandes prantos, e as senhoras da Corte cortaram seus cabelos longos para o luto, tosquiando seus prezados cabelos e vestindo de almáfega e as cabeças cobertas de negros vasos. E na Corte e em todo o reino não ficou nem senhor nem pessoa principal que não se tosquiasse. E foram em todo o reino feitos grandes prantos, com grandes cerimónias de tristeza natural e de quem sabe de carpir, e toda a gente vestida de burel, almáfega, luto e vaso». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.


continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT