jdact e bnp
Até ao pf dia 31 de Agosto de 2012. Sala de Referência.
Minudências. João Paulo
Cotrim
E no
galope, ao bater de asas
do último insecto, roubei-te as imagens:
construíram-nos em pedra, rosa
sem fios de fogueira, a pele apartada
dos pulsos. Há um tremor por excesso de pupilas,
o brilho que me arrasta ao arrepio
para o teu campo visual
Luís Manuel Gaspar, in ‘Pandora’
do último insecto, roubei-te as imagens:
construíram-nos em pedra, rosa
sem fios de fogueira, a pele apartada
dos pulsos. Há um tremor por excesso de pupilas,
o brilho que me arrasta ao arrepio
para o teu campo visual
Luís Manuel Gaspar, in ‘Pandora’
«À força do bater de asas, Luís Manuel Gaspar ganhou uma reputação.
Tantas pupilas lança de encontro aos textos, sobretudo poéticos, sobretudo de
amigos, que lhes detecta as falhas de natureza: gralhas, incorrecções,
dislexias e paralisias. Possui memória de pedra e a atenção do fogo, qualidades
ancestrais que o tornam notável organizador de edições literárias, com o que
isso implica de intuição e paciência. A obra volátil torna-se completa por via
do seu afã. Há quem diga que basta passar pelos sítios, conversar com este e
aquela, para que a sua vetusta pasta recolha com simplicidade os segredos e
detalhes dos artistas de nomeada como do poeta mais obscuro. Mas ainda se tem
desfeito revisor, aquele que volta a ler, que persegue o galope da frase até
que as palavras se tornem definitivas. Em qualquer destas suas vocações da
releitura, o seu brilho está no detalhe.
Como nenhum outro ilustrador, o essencial da sua obra pode ser
encontrado algures entre a Natureza e a palavra (nos livros de poesia, capas e
miolo; dando rosto aos volumes de ficção; em livro infantil com animais; nas
bandas desenhadas que ilustram poemas de Sophia, Pessoa, O’Neill entre tantos
outros).
Uma parte deste campo visual radica no naturalismo mais despojado, aqui
e ali retocado pelas cores vibrantes do acrílico. São lugares (recantos de
cidade) e paisagens (de beira-mar), gatos em diversas poses com todos os pêlos
(sim, contei-os…), moscas ou objectos. E retratos, de escritores ou de
felídeos. A riqueza de pormenor vai do cenário de ópera íntima à dentição
completa do peixe. A segunda parte acomoda-se na gaveta dos surrealismos, como
se as gralhas dos textos se transfigurassem em híbridos do mundo natural.
Tenho-os no aconchego da mão e não me canso de os mirar: aracnídeos em flor,
ramos secos que se locomovem em patas de aranha, pássaros que se desfazem em
estames e corolas, ausências de branco no coração de um bailado de folhas.
Neste reino desenhado de Gaspar com pujante ciência, animal e vegetal e
inanimado fazem-se criatura única que evolui perante os nossos olhos na
superfície do papel. Uma composição por vezes abstracta que faz todo o sentido.
O que parecia arbitrária conjugação de factores pulsa uma naturalidade óbvia,
que parece dizer-nos, então não tinhas reparado que os gravetos de pinho são
invertebrados de exoesqueleto quitinoso?
Por junto e sem risco, podemos afirmar estar em presença de um pequeno
ecossistema circulante, também ele orgânico, de desenhos parasitas dos livros e
das palavras. Mesmo que não sejam detectadas outras mais evidentes relações,
partilham espaço e alimentação. Luís Manuel Gaspar foi ao museu de uma história
natural paralela e esquecida, onde o universo fazia sentido através da
catalogação sistemática em enciclopédias ilustradas, e libertou a força
primordial das coisas: esqueletos e ossos, corpos e suas partes, folhas,
ferramentas, plantas, pétalas e pólenes e luminescências, becos sem saída,
paredes decadentes, azulejos, uma gama de fórmicas além da inesgotável lista de
insectos, de moscas e faróis. Portanto, todo um vocabulário que se vai
reinventando e tecendo a teia onde a morte se há-de sentar.
O estilo minucioso de Luís-sem-acento tem como assinatura a
tinta-da-china e o aparo fino, tão fino como a sua elegância. Não dá um passo
sem sépia. Mas a gama de cor, por exemplo nas citadas bandas desenhadas
(publicadas no jornal Viva Voz e na revista Ler) onde o poema
corre como arrepio suscitando variações do olhar sobre sítio significante em
modo disléxico e não ilustrativo, torna-se personagem. Pela intensidade da
paleta generosa e densa, as texturas, a luz, os céus acontecem mais reais que o
real. Como na poesia que também pratica, o museu naturalmente de Luis enche de
carne e veias o farol assim como dá ao granito a leveza do veludo». In
Biblioteca Nacional de Portugal, Exposição, Um
Lugar nos Olhos de Luís Manuel Gaspar (texto introdutório do
catálogo Um
lugar nos olhos, 2011).
Cortesia de BNP/JDACT