domingo, 8 de julho de 2012

O Primitivo Teatro Português. Luiz Francisco Rebello. «Semelhante concepção da arte dramática não é contrariada pelo facto de as obras literárias que servem de suporte (outros dirão, talvez, de pretexto) ao espectáculo possuírem, como tais, a sua própria existência»



jdact e cortesia wikipedia

O Teatro é uma Totalidade
«É um erro, em que muitos incorrem ainda com frequência, conceber a história do teatro como um simples capítulo da história da literatura. As raízes desse erro remontam à antiguidade clássica, quando Aristóteles na sua Poética considerou o espectáculo a parte menos importante do teatro, «pois a tragédia subsiste inteiramente sem a representação e sem o jogo dos actores», concepção esta que os teorizadores da Renascença entronizaram em dogma absoluto. A partir do século XIX, este conceito, cada vez mais distanciado da prática do teatro, entrou em crise: ao defender a «livre circulação dos manuscritos pelos teatros», destinando-os «exclusivamente à representação», Hegel vibrou-lhe o primeiro golpe, a que vários outros se sucederiam, permitindo uma crescente emancipação da arte dramática mediante a colocação do acento tónico na noção de espectáculo. Rompendo com a tradição literária do teatro ocidental (ou, mais propriamente, com a teorização sedimentada a partir de uma leitura unilateral desse teatro), o encenador inglês Gordon Craig cristalizou, numa fórmula que ficou célebre, inserida num texto datado de 1905, todo esse longo trabalho de revisão estética: «A arte do teatro não é a representação dos actores, nem a peça escrita pelo autor, nem a encenação, nem a dança; é, sim, constituída pelos diversos elementos que compõem o espectáculo – o gesto, que é a alma da representação; as palavras, que são o corpo da peça; as linhas e as cores, que são a própria existência do cenário; o ritmo, que é a essência da dança».
Assim, o teatro é uma totalidade, em que o texto – a componente literária – se não situa antes nem para além do espectáculo, mas no centro deste, núcleo de que irradiam os demais elementos integrantes dessa totalidade. Na verdade, a criação teatral não se esgota no acto puramente literário que lhe está na origem, pois as palavras escritas pelo autor (o «corpo da peça», dizia Craig) exigem a voz dos actores que hão-de murmurálas ou gritá-las; as personagens a quem o autor atribui essas palavras requerem o corpo dos comediantes em que hão-de habitar; essas personagens, que ao serem concebidas pelo autor possuem apenas uma dimensão temporal, reclamam o espaço físico onde possam descrever a parábola da sua existência fictícia, mas nem por isso menos autêntica. Todos estes elementos – a palavra e a voz, a personagem e o gesto, o tempo dramático e o espaço cénico – coexistem virtualmente no texto, que em germe os contém, e é a encenação que os promove e projecta na sua dimensão exacta, ao mesmo tempo que possibilita o momento final e decisivo da criação teatral, que é o do encontro com o público ao qual se destina. Razões históricas circunstanciais poderão levar, em determinados momentos, a privilegiar um ou outro destes factores; mas o que caracteriza as grandes épocas da história do teatro é a conjunção de todos eles, a conversão numa unidade sócio-cultural da totalidade estética que o teatro é.


Semelhante concepção da arte dramática não é contrariada pelo facto de as obras literárias que servem de suporte (outros dirão, talvez, de pretexto) ao espectáculo possuírem, como tais, a sua própria existência.
  • os Persas de Ésquilo e a Antígona de Sófocles,
  • as Barcas de Gil Vicente e o Hamlet de Shakespeare,
  • o Tartufo de Molière e a Fedra de Racine,
  • o Cid de Corneille e a Fuenteovejuna de Lope de Vega,
  • a Hospedeira de Goldoni e o Lorenzaccio de Musset,
  • os Espectros de Ibsen e o Cerejal de Tchekov,
  • as Seis Personagens de Pirandello e a Mãe Coragem de Brecht.
São outros tantos textos literários que valem objectivamente por si mesmos; mas os seus autores, ao escreverem-nos, o que tinham em mente era a sua representação num palco, vivificados pela presença dos actores e pela participação do público.
Nenhum destes textos gloriosos foi escrito para ficar imobilizado nas páginas de um livro, menos ainda na estante de uma biblioteca. O acidente, na sua vida, será a publicação, não a representação. Porque esta, mais do que aquela, fazia parte integrante da sua essência originária, era a meta final para que tendiam». In Luiz Francisco Rebello, O Primitivo Teatro Português, Instituto de Cultura Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1977.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT