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«Curiosamente, esta espécie de breviário de sedução e de iniciação
erótica que é o “Crime do Padre Amaro” não teve o sucesso que se poderia
esperar. Não conheço a opinião dos nossos queirosianos. Atrevo-me a supor que
aquela história de amores ilícitos de um jovem padre e de uma rapariga de
província, não tinha ainda o seu público.
O “Crime” deverá ter aparecido como chocante, mas sobretudo triste, trágico,
pouco interessante para o público provincial ou de formação provinciana. O “Primo
Basílio” prestava-se mais à identificação da classe letrada, da média burguesia
de Lisboa. O adultério clássico, no fundo era mais tradicional. Audaciosos só
os pormenores licenciosos, explícitos, inéditos em língua escrita ‘honorable’.
No fundo estava na linha das “Farpas” e do mundo lisboeta conhecido. Contudo e
sem mudanças de tomo, toda a problemática de Eça está já no “Crime”. Não só uma
história de amor transgressivo, de uma transgressão que toca um dos ‘tabus’ não
apenas religiosos mas sociais da sociedade portuguesa, mas uma história quase
panfleto, apesar ou por causa do seu tom tão natural, tão quotidiano, que
continuando ou explicitando o programa das “Farpas” desconstrói pela ironia, às
vezes bem pesada da sátira, ou pela exibição dos ridículos de uma pequena
cidade nossa do século XIX, qualquer coisa mais profunda e então, na opinião
pública, sacralizada: a sociedade portuguesa com a sua centenária ou mesmo milenária
cultura e sensibilidade cristãs. Nunca mais ninguém se atreveu a traçar um
retrato da nossa sociedade tão grotesco mas também conscientemente
anticlerical. Para o comum dos leitores, no fundo, mesmo não percebendo a sua
incrível audácia, um retrato devastador não só dos hábitos patriarcais,
conservadores, do nosso povo, mas da crença mesma que alicerçava ainda, mesmo
se já atenuada pelo liberalismo, séculos de cultura portuguesa. O retrato, ou
melhor, o contra-retrato desse mundo anunciado mas bem além que o prometido
pelas ‘Conferências do Casino’. Não estou certo que o próprio Antero se
reconhecesse nessa fotografia ou visão burlesca digna de Offenbach. A evocação
da música não é um acaso. Eça inventou a primeira coluna sonora da nossa
literatura. A atmosfera musical da época, das canções da moda à ópera, faz
parte da sua ‘partitura’. É como uma ‘abertura’ que começa a farsa burlesca, erótica,
social que é o “Crime”. Tudo aí é anunciado na primeira linha:
- Foi no domingo de Páscoa que se soube em Leiria que o pároco da Sé, José Miguéis, tinha morrido de madrugada de uma apoplexia.
Isto que podia ser uma ‘constatação’, uma informação ‘realista’, na
linha que vai de Balzac a Hemingway, é já o ré da sinfonia anticlerical do “Crime”.
Nada tem com um realismo fiel ao ‘fait divers’.
‘Foi no domingo de Páscoa’, quer dizer, no dia da ressurreição, a festa
das festas da Igreja. Ora é esse dia que Deus escolhe para levar José Miguéis
com uma apoplexia. Eça abusa das apoplexias. São o seu deus ‘ex machina’ das soluções
sem saída ficcional. Há pelo menos cinco, no “Crime”. A de Juliana, no “Primo
Basílio”, será mais bem preparada. Talvez demais. Neste começo, e ao longo do
romance, Eça oscila entre a clássica ironia voltairiana e o olhar naturalista
de Montpassant. O retrato do pobre padre José Miguéis é um modelo do género.
Mesmo as suas virtudes são para ele um ‘handicap’. É grosseiro, arrota no
confessionário, é um comilão como muitos padres de Camilo. O seu próprio bom
senso lhe é exprobrado. A sua falta de paciência para com as beatices das suas
paroquianas esvazia-lhe a igreja. ‘Ninguém o lamentou e foi pouca gente ao seu
enterro’ escreve Eça. E para que o retrato seja completo, o pobre padre é
miguelista». In Eduardo Lourenço, As Saiasde Elvira e Outros Ensaios, Gradiva,
Lisboa, 2006, ISBN 989-616-151-8.
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