domingo, 15 de julho de 2012

Memorial do Convento. José Saramago. «O mestre levantara uma pequena vela triangular, o vento ajudava a maré, e ambos o barco. Os remadores, frescos da noite dormida e da aguardente bebida, remavam certo e sem pressa. Quando dobraram a ponta de terra, a barca foi apanhada na força da corrente e da vazante, parecia uma viagem para o paraíso…»


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«Quando chegou ao cais, era já sol-fora. Começara a vazante, o mestre da barca gritava que ia largar não tarda, Está a maré boa, quem embarca para Lisboa, e Baltasar Sete-Sóis correu pela prancha, tilintavam-lhe os ferros dentro do alforge, e quando um gracioso disse que o maneta levava as ferraduras no saco, se calhar para as poupar, olhou-o de revés, meteu a mão direita e tirou o espigão, onde, agora bem se via, se não era aquilo sangue seco, era o diabo que o fingia. O gracioso desviou os olhos, encomendou-se a S. Cristóvão, que defende de maus encontros e acidentes de viagem, e dali até Lisboa não abriu mais o bico. Uma mulher que calhou ir sentada ao lado de Sete-Sóis, com o marido, desatou o farnel do almoço, e se à vizinhança ofereceu por comprazer, mas nenhuma vontade de repartir, com o soldado insistiu tanto, que ele aceitou. Baltasar não gostava de comer diante de gente, com aquela sua mão direita que sozinha parecia canha, o pão que escorregava, o conduto que caía, mas a mulher ajeitou-lhe a comida em cima duma larga fatia, e assim, alternando o uso dos dedos com a ponta da faquita que tirara do bolso, pôde comer com descanso e suficiente asseio. A mulher tinha idade para ser sua mãe, o homem para ser seu pai, não se tratava ali de nenhum namoro sobre as águas do Tejo, nas barbas de involuntário ou consentidor pau-de-cabeleira. Apenas alguma fraternidade, dó de quem vem da guerra aleijado para sempre.
O mestre levantara uma pequena vela triangular, o vento ajudava a maré, e ambos o barco. Os remadores, frescos da noite dormida e da aguardente bebida, remavam certo e sem pressa. Quando dobraram a ponta de terra, a barca foi apanhada na força da corrente e da vazante, parecia uma viagem para o paraíso, com o sol relampejando na superfície da água e duas famílias de toninhas, qual uma, qual outra, cruzando à frente da barca, escuros os seus lombos luzidios, arqueados como se imaginassem o céu perto e lhe quisessem chegar. Na outra margem, assente sobre a água, ainda longe, Lisboa derramava-se para fora das muralhas. Via-se o castelo lá no alto, as torres das igrejas dominando a confusão das casas baixas, a massa indistinta das empenas. E o mestre começou a contar, Boa foi a que sucedeu ontem, quem quer ouvir, e todos queriam, sempre era um modo de passar o tempo, que a viagem não é curta, Então foi assim, começou o mestre, chegou aí uma frota inglesa, que está além, em frente da praia de Santos, e traz tropas que hão-de ir para a Catalunha, para a guerra, com as outras que cá estavam à espera, mas veio também com ela um navio que trazia uns casais de facinorosos desterrados para a ilha das Barbadas, e umas cinquenta mulheres de má vida que para lá também iam, a fazerem casta, que em terras dessas tanto monta honrada como desonrada, mas o capitão do navio entendeu, diabo do homem, que em Lisboa a poderiam fazer melhor e assim se aligeirou da carga, mandou pôr as mulheres em terra, com o corpinho que têm, que algumas vi-as eu, não era nada má a inglesia. Riu-se de gosto antecipado o mestre, como se estivesse fazendo seus próprios planos de navegação carnal e calculando os proveitos da abordagem, riram grosso os remadores algarvios, Sete-Sóis espreguiçou-se como um gato ao sol, a mulher do farnel fez que não ouvira, o marido estava sem saber se havia de achar graça à história ou ficar sério, justamente porque histórias destas já a sério as não podia tomar, se alguma vez pudera, vivendo longe, em terra de Pancas, onde, do nascer ao morrer, é sempre o mesmo rego da charrua, a própria e a figurada. E, pegando numa ideia, depois noutra, por alguma razão desconhecida as ligando, perguntou ao soldado, E vossemecê, que idade tem, e Baltasar respondeu, vinte e seis anos.
Lisboa ali estava, oferecida na palma da terra, agora alta de muros e de casas. A barca aproou à Ribeira, fez o mestre manobra para encostar ao cais depois de ter arriado a vela, e os remadores levantaram num só movimento os remos do lado da atracação, os do outro lado harpejaram a amparar, mais um toque no leme, um cabo lançado por cima das cabeças, foi como se se tivessem juntado as duas margens do rio. Estando vaza a maré, ficava alto o cais, e Baltasar ajudou a mulher do farnel e seu homem, de peito feito pisou o gracioso que não tugiu nem mugiu, e, alçando a perna, num só impulso se achou em firme.
Havia uma confusão de muletas e caravelões que descarregavam peixe, os olheiros gritavam e maltratavam de palavras e algum safanão os carregadores pretos que passavam ajoujados, encharcados pela água que escorria das grandes alcofas, com a pele dos braços e da cara salpicada de escamas. Parecia que tinham vindo juntar-se no mercado todos os moradores de Lisboa. A Sete-Sóis crescia-lhe a água na boca, era como se uma fome acumulada em quatro anos de campanha militar estivesse saltando agora os diques da resignação e da disciplina. Sentiu o estômago aos torcegões, inconscientemente procurou com os olhos a mulher do farnel, onde é que ela já iria, mais o seu sossegado marido, este provavelmente a mirar as fêmeas que passavam, a adivinhar se eram inglesas e de má vida, um homem precisa de fazer a sua provisão de sonhos». 
In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT