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«Era minha intenção, antes de conhecer o título destes encontros, de me
ocupar do que se poderia chamar o imaginário socialista e, em particular, o
nosso de portugueses. Não o farei, mas lembrarei brevemente a forma que tinha a
ideia socialista em Portugal há apenas 41 anos, no momento em que se exprimia
no discurso corporativista de A. Sérgio, para mostrar até que ponto, com a
maior boa vontade, coerência e lucidez, o ‘futuro’
do socialismo, em Portugal enquanto ‘presente’
onde agora estamos, não correspondeu ao que o autor da "Alocução aos
Socialistas" imaginava em 1947. Não o farei para calçar imaginariamente as
botas do grande ensaísta, que me ficariam ao mesmo tempo demasiado grandes e
apertadas nos tornozelos, mas para religar o imaginário de ontem, um ontem
relativamente próximo, ao de hoje e o de hoje ao de amanhã.
Duas notas ressaltam nessa famosa alocução: a serenidade quase onírica
com que A. Sérgio expõe o seu programa socialista, sem querer saber para nada
do contexto da época em nossa casa - e que contexto! - e a candura, digna de D.
Quixote - e a esse título sempre exemplar – com que imagina ‘ser’ fácil implantar o socialismo em
Portugal. Mais do que fácil - óbvio.
São as razões desse optimismo que são interessantes: mais do que nos
grandes países industriais do Ocidente, é fácil implantar esse socialismo em
Portugal, minando do interior, sem alardes, através do movimento cooperativo,
um tecido capitalista ainda rural, de país pobre. Mais: Sérgio conta com a
intervenção do Estado para essa apropriação, ‘pacífica’ segundo ele, da indústria ou da propriedade privada. Sem
caricaturar, tem-se por vezes o sentimento de que contava com Salazar para implantar
o Socialismo em Portugal... E não se imagine que sob a sua linguagem
idealizante e de grande elevação ética, A. Sérgio sugeria uma forma de socialismo
que hoje diríamos ‘moderada’ ou
socialismo do ‘possível’. Não: como
D. Quixote, ou como mais tarde os ‘estudantes
de Maio’, o nosso cavaleiro da ‘Razão’
pede o ‘impossível’: o que ele chama,
em termos claros, a ‘colectivização’.
- Em resumo, ponhamos os bons métodos de administração do capitalismo (os que a experiência abonou, os que ela mostrou eficazes) ao serviço de finalidades essencialmente socialistas, isto é, da produção colectivista.
Assim falava, em 1947, na aurora da Guerra Fria, num contexto
internacional preciso, tendo à vista uma prática socialista que não é a sua,
mas ‘existe’, um dos pais espirituais do ‘nosso’ socialismo. Resumamos:
- era o seu um projecto de realização não só fácil mas iminente de um socialismo que, embora de maneira suave, tinha como meta e horizonte a colectivização. Assim, para Sérgio ‘socialismo e futuro’ confundem-se. E deviam confundir-se não só como um imperativo de justiça social numa organização racional de sociedade, mas da própria Razão e da Cultura ‘humanista’ de que ela era a essência e o resultado.
In Eduardo Lourenço, A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História?,
Ensaios Políticos, Gradiva, 2009, ISBN 978-898-616-310-5.
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