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«O cavalo relinchante da Reconquista arrastava nos dentes uma rede
larga não tanto e só para cercar as terras, mas antes de mais para ferrar o
gado humano que as adubava e rompia. Caçava-se tudo: muçulmanos, berberes,
hispanos, árabes, moçárabes.
No Garbe ou Ocidente a primeira bolsa caça-homens e terras marcou-se
com a conquista de Coimbra e das praças de Entre Douro e Mondego. Este o
primeiro irreparável golpe. Mas o Islão continuava a descer do imensidão da
Estrela, a atacar de Leiria e o alternar comércio e luta pela estrada
Coimbra-Santarém. A queda desta última cidade e de Lisboa estendeu a rede do
Tejo litoral. Milhares de moçárabes e muçulmanos esbracejaram nas malhas e teve
de se escoar mais de um decénio para Alcobaça, Óbidos e outras terras estremenhas
ficaram bem presas. O tropear dos ginetes foi depois abalado pelos matagais
alentejanos: Giraldo Sem Pavor e os seus guerreiros moçárabes esfiaram pouco a
pouco os laços que apertavam o Alentejo a Badajoz e a Sevilha. O Guadiana
começou então a leste o solitário caminho de fronteira. A última bolsa progrediu
como um fecho de correr sobre os castelos que iam de Alcoutim a Algezur.
Os ventos da Conquista-Reconquista não sopravam apenas do norte: vinham
de leste, do oeste, do sul, de sudoeste. Olhe-se o mapa físico: ergam-se as
massas das montanhas, talhem-se os cursos dos rios. Ponteiem-se depois as
cidades: primeiro Córdova o farol; depois Sevilha, Toledo, Saragoça, Valência,
Silves, Badajoz. É de lá que o vento sopra. De lá se bombeiam as mercadorias,
as armas, os cavalos, os homens. Para lá se acorre em busca de ciência, de civilização
e de riquezas.
A ocidente os esteios da Reconquista foram, no século XI e princípios
do seguinte, Coimbra; depois Santarém e Évora: e logo Juromenha, Serpa - que
sei eu! -, até se cortar a grossa artéria que bombeava de Sevilha. A ofensiva
cabia àquele dos competidores que dominava através de praças-fortes a passagem
dos grandes rios ou da massa das montanhas. Assim ocorreu no Douro muçulmano
cravado a norte pelas praças de Anciães e de Paredes. Assim aconteceu no
Mondego, seguro pouco a pouco pela cintura de Condeixa, Ega, Soure e Redinha.
Seia fechava o cinturão da Estrela. Quanto ao Tejo norte muçulmano, ei-lo
agrafado por Cera (Tomar) e Almourol, que o Tejo cristão vem sustentado por
Almada, Palmela, Coruche e, mais adiante, pela ponta de lança, a Évora de
Giraldo. O Guadiana está sustido pelas lanças de Serpa, Moura, Arouche,
Badajoz.
Não foi o choque frontal dos exércitos por si só, que trouxe a vitória
aos estados cristãos. Só quando Fernando Magno e seu filho Afonso VI se propõem
aceitar a originalidade social e até religiosa do Islão, só então as conquistas
se tornaram irreversíveis.
Os homens de Entre Douro e Mondego ergueram a cruz mediante a
iniciativa de Sisnando de Tentúgal, vizir de Sevilha, conde de Coimbra.
Governou a nova estrema com poderes soberanos: poder de dar e auferir, de organizar
todas as coisas segundo a sua vontade. E a sua vontade consistiu em favorecer
os proprietários livres, em firmar a organização colectiva urbano, em recolher
as técnicas e a ciência do mundo muçulmano que o formara. Mas Sisnando não
estava sozinho. Apoiavam-no as espadas e os alfanges dos proprietários livres de
Lamego, de Viseu, de Seia, de Coimbra. A força dos seus homens bastou ao menos
para impedir que a toda poderosa hierarquia religiosa impusesse o bispo que
esta escolhera.
Aponta-se como objectivo expresso do conimbricense o de integrar o
Andaluz nos estados cristãos, respeitando a originalidade e as conquistas
sociais, combatendo a intolerância religiosa. Vinte e um anos depois de assumir
o governo de Entre Douro e Mondego, Sisnando revela-se um político aceitável
para os habitantes do outro lado da fronteira ao negociar a capitulação de
Toledo cujo governo assume.
Os toledanos conservam as suas conquistas sociais e até a sua mesquita
aljama profanada pouco depois pelo partido franco apesar dos protestos do seu
governador: ‘Proceder assim é inutilizar a política empreendida, deter os que
já se movem a nosso favor’.
Sisnando ufanava-se do seu título de vizir, do seu passado de ministro
na muçulmana Sevilha, embora Afonso VI, anos mais tarde, no foral de Toledo de
1102, perdoando, ameaçasse os toledanos pelo seu ex-moçarabismo e maulismo: ‘Perdoo-vos
para que não caiais na antiga sujeição’».
In António Borges Coelho, Portugal na Espanha Árabe, História, Colecção
Universitária, Editorial Caminho, 1989, ISBN 972-21-0402-0.
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