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O encontro
«Dois homens jovens desembocaram da loja da Livraria Bertrand e subiram
o Chiado até à esquina da igreja do Loreto. Dali foram andando pela rua da
Misericórdia acima e entraram num prédio que dava para o jardim de S. Pedro de
Alcântara. Um deles era pálido e tinha um ar doentio. Os olhos dilatados e
abstractos de visionário, como quem olha para dentro e não vê o que tem diante
de si. Alguma ênfase no porte e mesmo uma certa rigidez no andar. O seu
companheiro era um homem alto, distinto e de porte airoso, vestido de preto:
chamava-se José Fontana e era empregado administrativo da Livraria Bertrand.
Fontana ia apresentar o seu amigo a uma roda de rapazes que se juntava,
para cavaquear, no prédio onde entraram ambos. Eram quase todos diplomados na
Universidade de Coimbra, e perante eles Fontana sentia-se intimidado. O
companheiro de Fontana, Joaquim Pedro Oliveira Martins, era também um homem sem
curso, já empregado; empertigava-se contra o acanhamento perante aqueles jovens
‘doutores’ que falavam brilhantemente e com uma loquacidade por vezes frívola
sobre todos os assuntos conversáveis. Martins conhecia alguns de nome e
pretendia travar relações com Antero de Quental, que dois anos antes tinha publicado
um sensacional panfleto a propósito do afundamento da monarquia em Espanha: “Portugal
perante a Revolução de Espanha”. Martins ficara trespassado pela sua conclusão:
- Nas nossas actuais circunstâncias o único acto possível de verdadeiro patriotismo consiste em renegar a nacionalidade.
Martins tinha-se por um ardente patriota, e contra o fantasma da união
ibérica escrevera dois anos antes um romance histórico intitulado “Phebus Moniz
(1868)”, que o autor mais tarde retirou do mercado.
Antero era o polo magnético do grupo de S. Pedro de Alcântara e entre
os dois homens houve um verdadeiro ‘coup de foudre’, cujos efeitos se
prolongarão até ao fim da vida. O “In Memoriam” de Antero de Quental é uma
prova do poder de atracção que Antero exerceu sempre nos seus companheiros.
Entre ele e Martins estabeleceu-se uma dupla relação, filial e paternal. Antero
era um espírito brilhante, improvisador, oscilante, em constante desacordo
consigo próprio e que precisava da contradição para se afirmar; não conseguiu fixar-se,
nem numa actividade, nem numa mulher, nem num sítio. Entre o continente e a
ilha de S. Miguel, entre a poesia e o pensamento discursivo, entre a
doutrinação e a acção prática, entre a reflexão e a agitação das massas, foi um
constante vagabundo. Uma vez na vida uma paixão levou-o a pensar no casamento
com uma aristocrata francesa. Hesitou e pensou.
A desistência causou-lhe um tal abalo que se refugiou em casa de Oliveira
Martins, onde intentou suicidar-se. Martins não tinha o brilho e o poder de sedução
do seu principal amigo, mas inspirava-lhe uma confiança paternal. Tinha casa,
mulher e emprego. Fizera-se a si mesmo como um ‘self made man’. Era para Antero
uma ‘casa’ onde ele se refugiava nas horas de crise e era, além disso, um polo
de contradição. Começaram por discutir em público e continuaram em permanente
diálogo epistolar. Martins era para Antero um apoio sólido, uma terra firme, e
tinha para o seu amigo uma ‘cabeça cronométrica’. Antero era para Martins um
mestre sabedor e atento, que lhe corrigia os erros de redacção e de gosto; lhe
indicava e emprestava livros; que se oferecia para preparar com ele as novas
edições; solidarizava-se, inclusivamente, com as suas posições políticas,
género ‘para onde você for eu vou’.
Fontana, na mesma reunião, apresentou Martins aos outros participantes
do Cenáculo. Um deles, muito elegante, maravilhou o recém-vindo com as suas
histórias. Martins admirou o seu humor, a sua verve, a sua mímica. Era Eça de
Queiroz. Tinha acabado de regressar de uma viagem ao Egipto e à Palestina. Outro
era um rapaz educado no colégio alemão de Lisboa, também esmeradamente vestido,
mas sem espalhafato. Cursava Agronomia e parecia um jovem diplomata. Chamava-se
Jaime Batalha Reis e provinha de uma família de lavradores ribatejanos. Os
três, Antero, Queiroz e Jaime, eram extraordinários e inesgotáveis conversadores.
Martins ficou encantado e conservá-los-ia como amigos para toda a vida. Havia
outros: a um canto, mais apagado, um advogado nascido na ilha Terceira e poeta
lírico, Manuel de Arriaga; mal imaginava ele então que havia de chegar a
presidente da República Portuguesa, ocupando o palácio onde agora residia o
Príncipe Real.
Eram todos republicanos, como o próprio Fontana. Os dois recém-chegados
iam ao Cenáculo procurar redactores para um jornal bimensal intitulado “República
- jornal da Democracia Portuguesa”, de que Fontana seria o editor e Martins
orientador e redactor. Ainda não aparecera no grupo a dissidência socialista, mas
a expressão ‘jornal da democracia portuguesa’ marcava a orientação “democrática”,
isto é, “esquerdista” (para falar à moda de hoje), destes republicanos. “Democrático”
era mais atrevido que ‘liberal’». In Tertúlia Ocidental. Estudos sobre Antero
de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queiroz e Outros, António José Saraiva,
Herdeiros de António José Saraiva e Gradiva Publicações, 1996, ISBN
972-662-475-4.
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