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No grão dia singular
Que na lira o douto som
Hierusalém celebrar,
Lembrai-vos de castigar
Os ruins filhos de Edon.
Aqueles que tintos vão
No pobre sangue inocente,
Soberbos co'o poder vão,
Arrasai-os igualmente,
Conheçam que humanos são.
In Luís de Camões
«Mas temos provas de que a primeira bula ‘Cum ad Nihil Magis’, de 17 de Dezembro de 1531, desencadeou
imediatamente os primeiros ataques, sobretudo às ‘heresias’ dos cristãos-novos.
Alexandre Herculano ligou, com toda a legitimidade, à bula de 1531 a publicação
da lei régia de 14 de Junho de 1532 que proibia os cristãos-novos de abandonarem
o reino. Mas são os próprios papas Clemente VII e Paulo III que confirmam a
perseguição desencadeada após a bula de 1531. Primeiramente Clemente VII na
bula ‘Sempiterno Rege’ revoga a bula
de 1531 impondo extinção absolvição, soltura, libertação e anulação ou
incorrerá na indignação de Deus omnipotente e dos bem-aventurados Pedro e Paulo
seus apóstolos.
Em 1534, agora Paulo III, pelo breve ‘Romanus Pontifex’, de 26 de Novembro, manda suspender o
procedimento contra os hereges e soltar os presos que não fossem relapsos. Em
1535, de novo Paulo III, pelos breves ‘Inter
Cetera’ e ‘Dudum postquam’, ambos
de 17 de Março, estabelece o perdão e exige a suspensão do procedimento contra
os cristãos-novos.
Toda esta legislação conservada em ordem nos arquivos inquisitoriais,
não faz sentido se a bula de 1531 não tivesse desencadeado com cobertura
jurídica, a primeira grande vaga de perseguição aos cristãos-novos.
Mas não nos movemos somente no domínio do direito formal. Chegaram até
nós ao menos três processos organizados no período, 2 em Évora e 1 em Lisboa,
processos que as Inquisições (malditas) destas cidades conservaram como herança
sua. Comum aos três processos o envolvimento do cardeal Afonso, certamente
arcebispo de Lisboa e perpétuo administrador do bispado de Évora. Só que uma
das vítimas de Évora morava em Freixo de Espada à Cinta. Ora, nos seus primórdios,
a Inquisição (maldita) de Évora vai precisamente actuar no Nordeste Transmontano
e nalgumas zonas da Beira. O cardeal Afonso viria a falecer em 1540, já depois
de seu irmão Henrique, então arcebispo de Braga, ter sido designado pelo rei
inquisidor-geral.
O jurista que superintendeu no primeiro processo de Évora, movido em
1533 a Guiomar Fernandes, de 17 anos, natural de Montemor-o-Novo, cristã-nova,
foi mestre Pedro Margalho, juiz por especial mandado em esta causa pelo muito
excelentíssimo Cardeal Infante nosso Senhor [o cardeal Afonso]. Guiomar Fernandes
libertada em 1535 pelo perdão de Paulo III, era acusada de ter soltado a língua
quando recolhia água do poço. Bradando uma mulher: - Virgem Nossa Senhora!,
Guiomar, então com 12 a 13 anos (os factos haviam ocorrido 4 a 5 anos antes),
exclamara: - Não posso crer que fosse virgem parindo - E acrescentara falando
com a mulher: - Paristes vós? - Sim. - Pois assim como vós parindo não ficastes
virgem não posso eu crer que Nosso Senhora ficasse virgem.
À cidade de Évora aparece também ligado o Conselho dos Cousas da Fé que
antecedeu o Conselho Geral da Inquisição (maldita).
Constituíam este primeiro Conselho: Rodrigo Lopes Carvalho, cónego da Sé de Évora;
João de Melo, principal organizador dos primeiros passos das Inquisições de
Évora e Lisboa; Gonçalo Pinheiro, cónego da Sé de Évora; e António Rodrigues
Monsanto.
A história da Inquisição (maldita) de Évora está obviamente ligada à das
outras inquisições portuguesas, e não só, e particularmente à actividade do
Conselho Geral.
Pode dizer-se que as primeiras tentativas de sistematização da ‘experiência
do Santo Ofício (maldito) foram organizadas pelos próprios inquisidores e
constituem os primeiros passos dados na direcção da sua história escrita:
livros de bulas e privilégios ordenados cronologicamente; listas de
autos-da-fé; regimentos cujo articulado vai sistematizando a actividade
anterior; cartas e pareceres de resposta (justificação ou ocultação) a críticas
das vítimas e dos opositores.
Os sermões dos autos-da-fé e alguns tratados contra os ‘judeus’
completam o quadro revelando-nos com crueza a mentalidade reinante nos círculos
eclesiais e do Estado.
Uma outra corrente com interesse historiográfico nasce dos escritos
produzidos pelas próprias vítimas e seus partidários, em particular os ‘Memoriais’ apresentados aos monarcas
filipinos. A estes círculos cabe a primeira tentativa de sistematização crítica
da actividade do Santo Ofício (maldito): as ‘Notícias Recônditas’, escritas na segunda metade do século XVII e
pela primeira vez publicadas em Londres em 1722. Nesta corrente historiográfica
integram-se também os escritos literários, filosóficos e religiosos dos exilados,
quase completamente ignorados pelos nossos historiadores, excepção feita, em
círculos restritos, a Samuel Usque e ainda a Gabriel Costa e Bento Espinosa». In
António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, volume 1,
Editorial Caminho, colecção Universitária, Instituto Português do Livro e da
Leitura, 1987.
continua
Cortesia Caminho/JDACT