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«O porto de Laredo nunca presenciara tanta gente, animais e barcos. Nunca
se ouvira tanto barulho, nunca tivera tanta actividade. A vista da janela da
cabina oferecia cenas incessantes de idas e vindas. Rapazinhos cambaleavam sob
o peso de sacas cheias de mantimentos de última hora. Encarregados corpulentos
atiravam pragas aos bois inquietos que não conseguiam manter as carroças
imóveis.
Sob o gemido colérico de guinchos e molinetes, os oficiais berravam ordens
aos marinheiros. De todo o lado se ouviam pragas por causa de carga entornada,
enquanto os embarcadiços que haviam descoberto as jarras de vinho demasiado
cedo serpenteavam por entre os barris e os baús que enchiam o cais, numa
cantoria desafinada. Os soldados, cujos deveres não haviam ainda começado,
vagueavam por entre a multidão, gozando as gargalhadas bem-dispostas e as
palmadas nas costas dos seus camaradas.
Joana, deliciada com a algazarra e decidida a não perder nada de tanta
actividade, corria de uma janela para outra, encostando o rosto ao vidro. A sua
cabina, à popa do galeão recentemente construído, ficava tão alta que lhe
proporcionava uma posição privilegiada. Usando as janelas dos três lados,
avistava bastante longe, tanto para a direita como para a esquerda. A comitiva real
chegara a Laredo havia várias semanas, mas ficara detida até disporem de vento
favorável, esperado finalmente para o dia seguinte, 22 de Agosto de 1496, o que
explicava a incessante actividade exterior.
Deteve-se para olhar para a carta talvez pela centésima vez. Era de Filipe
e datava de 7 de Julho. Fora enviada à mãe, que lha dera. Sim, era uma carta do
seu futuro marido, impaciente pela chegada da noiva. O tom ousado aborrecera a
rainha, mas encantara Joana. Falava-lhe do desejo de um amante em estar com a
sua amada e o seu coração palpitava sempre que lia as palavras que exigiam a
sua partida imediata; senão, enviaria o embaixador espanhol para que a fosse
buscar, pois recusava-se a esperar mais.
Beijou a carta antes de a entregar a Zayda, pedindo-lhe que a lesse de
novo. Depois, aquele tesouro sem preço foi de novo guardado na sua caixa de
jóias.
- Agora podemos tratar disto. –Joana pegou nos documentos que o
almirante lhe deixara nessa manhã. A mãe insistira com ela para que tomasse
parte em alguns dos preparativos da frota e ali estava o mais recente e último,
segundo esperava. Os outros papéis haviam-se revelado completamente
desinteressantes, meras listas dos tipos e nomes dos navios: a sua tonelagem,
os capitães, as tripulações, o número de soldados e se eram da cavalaria,
infantaria, ou arqueiros e por aí fora. “Ad infinitum ou ad nauseam”, como
comentara com o tio, o almirante.
Apesar disso, Joana lera-os atentamente, sentindo algum conforto em
saber que a França ficaria tão intimidada pelo poder e dimensão da frota que
nunca se atreveria a pensar num confronto militar. Por outro lado, Filipe e os
seus conterrâneos sentir-se-iam sem dúvida profundamente impressionados por
aquela amostra do poder e da riqueza de Espanha.
A lista daquele dia era de provisões. Deu uma olhadela pelas colunas
bem alinhadas e começou a lê-las ao conselho ali reunido, ou seja, a Zayda e a
duas cadeiras vazias:
- Senhores, vejo que temos biscoitos de Sevilha; excelente. Azeite, sim,
isso é importante, precisaremos sem dúvida de azeite. Peixe salgado e carne
seca; óptimo, não poderia faltar. Que foi, Zayda? Não gostas. Diz aqui
pêssegos, compotas e farinha, soa muito melhor, pensa só nos maravilhosos
bolos, tartes e pão acabado de cozer. E que teremos nesta folha? Bem, o
suficiente para uma festa: galinhas, ovos, manteiga e vinho.
- Minha Senhora, creio que podemos felicitar o almirante por estas
excelentes escolhas que deliciarão o nosso paladar.
- É claro, tens toda a razão. Agradeço-vos a todos, cavalheiros.
- Deixou cair os papéis sobre a mesa, sacudindo das mãos aquela obrigação.
Ainda pouco habituada ao leve movimento sob os pés, deu alguns passos tímidos
até ao convés e agarrou a amurada para se equilibrar. Zayda envolveu-lhe os
ombros com um xaile. A chuva matinal dera lugar ao sol. A brisa brincava com as
bandeiras e os pendões enrolavam-se e desenrolavam-se, as suas cores
sobressaindo da floresta de mastros e cordame que subia e descia, oscilando
suavemente no ondular lânguido. Joana não parava de se espantar com o número de
embarcações. O almirante dissera-lhe que havia mais de cem, das quais vinte haviam
sido construídas nesse ano. Pareciam todas novas, com a sua tinta e verniz
brilhantes. Os gemidos suaves mas profundos da madeira e o rangido mais agudo
das espias eram rudemente interrompidos pelos gritos furiosos das gaivotas
mal-humoradas. Todos bradavam pela liberdade, impacientes pela busca de
aventura». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007, Joana, a Louca,
Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes, ISBN
978-972-23-4231-5.
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