Edila Gaitonde, ao tempo estudante no CMLisboa
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«Estávamos em tempo de guerra, mas, enquanto a Europa sofria os
horrores dos ataques aéreos e desesperadas batalhas se travavam em terra e no
mar, os habitantes dos Açores não tinham experiência alguma de ‘blackouts’ ou mesmo de escassez de
alimentos. Fisicamente, a guerra, não afectava as ilhas. Houve, no entanto,
alguns episódios tristes, como o do dia em que um marinheiro alemão, náufrago
de um ‘U-Boat’, veio dar à costa. Ferido e banhado em sangue, tinha sido o
único sobrevivente daquele submarino.
A cidade da Horta era nessa altura a estação de apoio para todos os
cabos submarinos que ofereciam os serviços de telecomunicação entre as Américas
e a Europa e por isso muitos empregados destas companhias viviam com as famílias
na ilha do Faial. Até então tinham vivido todos em paz, mas, quando a guerra
começou, a maior parte dos homens e jovens em idade militar tiveram de partir
para se juntarem às forças militares dos respectivos países, deixando as famílias
na ilha.
Algum tempo depois, pela calada da noite, chegou sub-repticiamente um navio
inglês, donde desembarcou um grupo de polícia militar marítima que se dirigiu
directamente a todas as casas das famílias alemãs, raptando mulheres e
crianças. De madrugada, quando o assalto foi descoberto, já o navio se encontrava
em alto mar levando consigo estas famílias alemãs, algumas delas açorianas e
casadas com alemães.
Pouco tempo antes de sairmos dos Açores ocorreu outro incidente. Um ‘destroyer’
francês interceptou um barco de passageiros da linha Açores-Lisboa, onde ia a minha
vizinha Regina Melo e a amiga Lola, filha do cônsul alemão, levando-as presas
para bordo. Foram levadas para Casablanca e dias depois mandadas para
Gibraltar, onde vieram a ser libertadas. Mesmo assim, a guerra parecia-me um
pouco remota e irreal. Durante anos sonhei com a partida, mas, à medida que o
tempo de deixar as ilhas se ia aproximando, comecei a ficar deprimida. Tanta beleza
natural à minha volta! A cor vívida e a profusão de hortênsias até tinham dado
ao Faial, o nome de ‘Ilha Azul! Era
uma verdadeira satisfação nadar naquele mar de água límpida e temperada, ao
abrigo da alta montanha da ilha do Pico que se eleva do mar ao longo do
estreito canal, numa perfeita forma cónica. Íamos deixar os amigos e a família,
cuja amizade e dedicação me pareciam agora tão preciosas. Deixava lá o meu
coração, mas tinha mesmo de partir. E assim, a meio do estio de 1943, chegámos
a Lisboa para começar uma nova vida: o papá, a mamã, a minha irmã Marília e eu.
A ilha do Faial, sendo uma das quatro ilhas centrais, tem a vista mais
linda de todo o arquipélago. Da janela mais alta da nossa casa via-se ao longe
a ilha de São Jorge, comprida, montanhosa e de altura uniforme, estendendo-se
ao longo do oceano, paralelamente à ilha do Pico como uma gigantesca parede divisória.
Ainda mais ao longe podia avistar-se, um pouco esvaída, a Graciosa.
À nossa frente, a escassas milhas marítimas de distância, a ilha do
Pico, imponente, levantava-se do mar azul, em forma de cone, atingindo uma altura
de cerca de 2600 metros. Todas as manhãs, quando abria as janelas, era este o
magnífico panorama que se me oferecia. O Pico, mudando de cor a todo o momento,
funcionava para mim como uma fonte de inspiração, umas vezes azul-marinho,
outras esverdeado ou alaranjado, e, quando o tempo se mostrava um pouco
sinistro, com uma cor escura, de chumbo, ou acastanhada. No Inverno, o cume
vestia-se de branco com a neve que o cobria. E a Lua despontava por detrás
daquela montanha conforme as estações do ano. A meio do mês de Agosto aparecia
no cume como se estivesse a espreitar-nos. Por vezes, a ponta do Pico apresentava-se
com um chapéu de nuvens. Sabia-se então que íamos ter chuva. A famosa vista de
Nápoles deixa muito a desejar quando comparada com a maravilha do Pico a mais
alta montanha de Portugal, especialmente quando vista da cidade da Horta, na ilha
do Faial.
A ilha do Pico, vista da cidade da Horta
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Deixáramos amigos e família, cuja amizade e dedicação me pareciam agora
tão preciosas. Mas a vida em Lisboa era tremendamente excitante para mim.
Começámos a organizar a nossa casa e eu a viver as novas experiências no Conservatório,
as grandes oportunidades que se me ofereciam e a companhia de novos amigos.
Pela primeira vez apercebemo-nos da frequente escassez de alimentos, visto que
os rigores da guerra eram mais evidentes em Lisboa, e tínhamos de esperar impacientemente
pelos caixotes de víveres que a tia Amélia, com todo o carinho, passou a
mandar-nos com regularidade». In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal e Goa
1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Cortesia de Editorial Tágide/JDACT