quinta-feira, 12 de julho de 2012

Largada das Naus. História de Portugal (1385 – 1500). António Borges Coelho. «A aventura portuguesa alimentava-se do corso, do comércio, da pilhagem dos campos marroquinos e dos reais para Ceuta, pagos pelos camponeses de Trás-os-Montes, de Entre Douro e Minho e da Guarda»


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«O mar deixa de ser o limite. Todos os anos, aos milhares, navegantes portugueses sulcam o Atlântico nas armadas e nos navios de comércio. Descobrem e cartografam; usam os ventos e as correntes marítimas; aprenderam pelas estrelas o lugar e a rota dos navios; registam o valor das mercadorias; usam intérpretes africanos; caçam e resgatam escravos. Levavam a cruz pintada nas velas, mas podiam cair sobre a presa como o albatroz.
Trocam gestos, cerimónias, roupas, vocábulos. Experimentam as armas e os corpos. O barco é o veículo, a casa, a fortaleza, o templo, a oficina, o armazém, O porta escravos, o porta navios, o caixão. Trespassado por setas ervadas, Nuno Tristão ainda subiu ao convés. Sepultaram-no no mar.
Um Infante investiu nas navegações e um rei fez dobrar o Cabo das Tormentas para chegar à Índia. Mas os navegantes eram homens comuns: Martim Vicente e Álvaro Esteves, pilotos de Lagos, Pero de Alenquer; Diogo Dias, que dançaria com os índios de Porto Seguro ao som da gaita de foles; o Álvaro Velho do Barreiro; o José Vizinho e o Duarte Pacheco Pereira, cosmógrafo e militar; Fernão Lourenço, mercador, feitor da Guiné e mais tarde da Casa da Índia; tripulantes, marinheiros e navegadores Sem nome que descem a esta hora em corrida ao lado de Fernão Veloso, perseguido pelos negros da Baía de Santa Helena.
A Madeira e os Açores, bases avançadas na navegação oceânica, tornaram-se os modelos da nova agricultura que intensificava a produção de cereais, da vinha, do azeite, de novas plantas como a cana do açúcar e introduzia o trabalho escravo. Os proprietários mais ricos coutavam as herdades. Desenvolvia-se a energia motriz da água e do vento, promovia-se a construção naval, o fabrico e o comércio das armas, os fornos de louça e de biscoito.
Ceuta é uma das cidades principais do sistema. A aventura portuguesa alimentava-se do corso, do comércio, da pilhagem dos campos marroquinos e dos reais para Ceuta, pagos pelos camponeses de Trás-os-Montes, de Entre Douro e Minho e da Guarda.
A gesta e os sacrifícios das navegações chegavam, pela notícia e pelo imposto, aos cantos mais recônditos do reino. Não faltaram portugueses na Europa cristã, em viagem, em comércio e em contactos religiosos e políticos. Uma armada lusa esteve ao lado dos ingleses na batalha de Azincourt. Ficaram famosas as viagens do conde de Barcelos até Jerusalém, as do Infante Pedro e as do conde de Ourém. os casamentos de Isabel de Borgonha e da imperatriz Leonor levaram à Flandres e à Itália custosas e grandiosas comitivas. Pero da Covilhã esteve no Cairo, em Adem, Calicute, Sofala e Etiópia; o rabi Abraão de Beja, em Ormuz.

As cidades e as vilas marcaram os acontecimentos políticos. Opuseram-se vitoriosamente à vontade do rei e dos grandes em 1438 e estiveram ao lado de João II contra a conspiração da alta nobreza em 1483 e 1484. Alfarrobeira trouxe ao de cima aqueles que queriam travar as liberdades das cidades e vilas e equiparar-se ao rei no poder supremo. Afonso V pagou-lhes o ‘serviço’ com as rendas, a jurisdição e altos cargos nas cidades e vilas. João II fê-los ajoelhar.
A ideia da união de Castela e Portugal subiu de novo no horizonte. Falhou no campo de batalha em Toro e na queda dum cavalo na ribeira de Santarém. Em 1494 o Tratado de Tordesilhas dividia o mundo descoberto e a descobrir. Portugal perdia o direito ao exclusivo e associava-se a Castela na partilha do Mar. A circum-navegação de África e o crescente domínio do Atlântico, a sul e a leste, alargavam a ideia da Terra e do Céu.

Ceuta. O assalto
Na noite de 20 de Agosto de I4I5, uma esquadra portuguesa de 200 velas, com tochas e candeias acesas, fundeava no porto de Ceuta. A cidade respondeu ao desafio, iluminando todas as janelas e terraços.
Pela manhã, já o sol queimava, os mouros, sem armadura, saíram à praia a barrar o caminho aos invasores. O rei João I comandava a frota. Ferido numa perna, abordou os navios, um a um. Ninguém desembarcasse sem ele dar o sinal.
O batel de João Fogaça, vedor do conde de Barcelos, não esperou pelo sinal e rumou a terra. Rui Gonçalves, futuro comendador de Canha, foi o primeiro a saltar fora. O infante Henrique mandou tocar as trombetas. E os seus homens, seguidos pelos do infante Duarte e por outros capitães, saltaram em terra e envolveram-se com os mouros que juncavam a praia. Não tardou que entrassem todos de roldão pela porta de Almina. ‘Já cá vai o da Albergaria, gritou Vasco Martins Albergaria. À força de martelos e de fogo, Vasco Fernandes Ataíde e os seus homens quebraram a segunda porta da cidade. O infante Henrique, jovem de vinte e um anos, e um grupo de dezassete combatentes deixaram-se encurralar num canto da Rua Direita durante duas horas e meia. Correu a notícia de que o Infante era morto. Entretanto a cidade caía nas mãos dos invasores, menos o castelo donde o alcaide Sala ben Sala e os seus homens fugiram pela calada da noite.
Ainda o rei João não tinha entrado pela porta, já o seu escrivão da puridade Gonçalo Lourenço Gomide, pai dos doutores, lhe pedia que o armasse cavaleiro. Trazia consigo quatrocentos homens, todos de sua libré.


Abrasados pela sede, atiçada pelo sol e a carne salgada, e muito mais pela cobiça, os novos cruzados caíram sobre a presa. Na pressa rasgavam com as fachas os sacos de especiarias que se derramavam pelo chão das lojas e das ruas. Os grãos de pimenta, calcados pela multidão, enchiam o ar com o seu odor». In António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal (1385 – 1500), Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-21-2464-5.

Cortesia de Caminho/JDACT