domingo, 8 de julho de 2012

A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária. Álvaro Manuel Machado. «Antero, pelo contrário, como autêntico revolucionário que foi da Geração de 70 e, portanto, mentor de uma utopia revolucionária mais próxima do século XX, esquece a própria memória, nega-a na medida em que nega o Estado como memória da nação, a Igreja como memória da alma, o partido como memória de classe»



jdact e cortesia de wikipedia

Revolução e Memória
«A alguns de nós, portugueses de após o 25 de Abril, a chamada «Geração de 70» poderá parecer, antes de mais, uma estranha geração de, digamos, revolucionários falhados. Ou mesmo de revolucionários anti-revolucionários. Ou mais simplesmente: de idealistas cépticos. Cépticos porque cultivaram, uns mais outros menos, o cepticismo fin-de-siècle e por vezes altamente blasé do pós-romantismo europeu. Idealistas, no sentido mais rigoroso do termo (convicção de que o poder absoluto das ideias transforma o mundo), porque, cultivando esse cepticismo, idealizavam ao mesmo tempo um Portugal que, de facto, nem existia na época em que viveram – fim de uma monarquia provinciana, colonizada social, económica e culturalmente pelos ingleses e pelos franceses e princípio da formação de uma ideologia republicana positivista, pequeno-burguesa e diletante – nem talvez tenha existido nunca.
Mas, se reflectirmos bem, todo este paradoxal cepticismo-idealismo da Geração de 70 tem a ver essencialmente com todo o grande drama do homem moderno, que é o drama da obsessão revolucionária e das suas relações com o tempo.
De facto, se analisarmos atentamente o comportamento político do homem moderno, ou, para ser mais exacto, do homem ocidental desde o princípio do nosso século (e a Geração de 70 foi dele precursora em Portugal), somos levados a analisar o seu (essencialmente inconsciente ou subconsciente) comportamento perante o tempo. Tentado pela grande aventura ideológica da revolução total, universal, e não (pelo menos na aparência) fundamentalmente nacionalista, o homem moderno, herdeiro directo do século XIX e sobretudo da Revolução Francesa, parece querer esquecer o passado e com ele o tempo «primordial» dos grandes mitos das origens. Ou antes, pretende dominar este tempo «primordial» através de uma sistematização de ideias revolucionárias que conduz à ideia-base de um fim absoluto da história, atitude que, afinal, sobretudo no que diz respeito à ideologia revolucionária marxista, se enraíza nos elementos propriamente judaicos do Cristianismo como esperança escatológica.
De certo modo, todo o acto revolucionário é um acto de esquecimento. Através dele, recorre-se ao instante de aparente convergência total do passado, do presente e do futuro para esquecer o passado histórico de um país no seu todo, bem como o de uma estruturação social – e mesmo o passado privado de cada indivíduo em si.
Melhor ainda: esquece-se o passado no seu todo para o confundir com um futuro ainda inevitavelmente obscuro graças à omnipotência de um presente igualmente obscuro mas pleno de promessas miríficas, de valores utópicos. Mas até quando e até onde vai esse esquecimento?
Não tarda muito que esse esquecimento revolucionário fulgurante do passado colectivo e individual se torne teologia terrorista baseada numa falsa continuidade histórica, ideologicamente codificada e controlada (e é contra isso que, profeticamente, se revolta um Dostoievski). Porquê? Por uma contradição fatal que está na base de toda a revolução moderna, contradição que remonta aos grandes precursores do romantismo revolucionário (a começar por Rousseau), os quais atacaram tudo o que era não-racionalista e, portanto, pregaram a revolução total como solução racionalista universal, para logo recusarem e até atacarem tudo o que na revolução era sistemático, dogmaticamente racionalista, origem de um terror revolucionário incontrolável, degradação ética, limitação burocrática e fanaticamente partidária. O romantismo e o que se lhe seguiu consistiu, em suma, ao nível histórico, nessa suprema contradição que foi a negação do Iluminismo, o qual esteve na sua origem e do qual dependeu inteiramente. O que, no plano das ideias e dos acontecimentos revolucionários, se traduziu em conflitos dramáticos que se arrastam desde a Revolução Francesa de 1789 e desde começos do século XIX nos países que a tomaram como modelo.
Assim, no que diz respeito à nossa história, em especial à nossa história cultural e política, a posição dos intelectuais portugueses da geração de 1830, a de Alexandre Herculano, e a da geração de 1870, a de Antero de Quental, relativamente à teoria e à prática da revolução difere, mantendo no entanto pontos comuns essenciais em que, para lá da formação filosófica e política universalista que caracterizou ambas, se denotam elementos específicos da história de Portugal.


De facto, para citar apenas Herculano e Antero, ambos participam activamente em movimentos revolucionários com ideias e com acções e ambos acabam por se retirar totalmente do palco da história, profundamente decepcionados. Ambos recorrem ao esquecimento, Herculano através do seu exílio voluntário de Vale de Lobos, Antero através do «exílio» igualmente voluntário e definitivo do suicídio. Ambos, embora a níveis muito diferentes de psiquismo pessoal, se recusam a aceitar a, digamos, memória artificial, mecânica, de uma revolução que nunca chegou a sê-lo inteiramente, a memória tornada praxis falsamente revolucionária. Ao Antero apolíneo e hegeliano do Hino à Razão opõe-se o Antero nocturno e, afinal, sobretudo baudelairiano (apesar da influência aparentemente predominante de Heine) das Primaveras românticas e em especial destes versos:

Este coração cansado!
O que ele quer é dormir
...O que ele quer é deitar-se
No leito do esquecimento.
(Ao luar)

No fundo, o que esquece Antero? Esquece a própria memória e a sua função historicamente mediadora. Esquece a própria memória – e nisto o seu esquecimento difere essencialmente do de Herculano, o qual, tentando esquecer a decepcionante realidade da evolução política, social e económica da Revolução Liberal de 1820, que acabou no Fontismo, nem por isso renega o valor do movimento revolucionário em si como recuperação de uma memória histórica que sucedesse ao esquecimento momentâneo do passado e à visão utópica do futuro. Daí a sua idealização propriamente romântica do Portugal pré-constitucional até 1385. Antero, pelo contrário, como autêntico revolucionário que foi da Geração de 70 e, portanto, mentor de uma utopia revolucionária mais próxima do século XX, intimamente ligada ao niilismo, esquece a própria memória, nega-a na medida em que nega o Estado como memória da nação, a Igreja como memória da alma, o partido como memória de classe.
Este esquecimento, anarquista no sentido mais absoluto do termo, que é no caso de Antero o de uma anarquia hegeliana do espírito, envolvido momentaneamente na aceleração da história, não pode conduzir senão à morte. Essa morte que está na raíz de uma ilusória aceleração da história. Como diz Octávio Paz:
  • «A aceleração do tempo histórico não passa de uma ilusão. As mudanças e as convulsões que, ora nos angustiam ora nos deslumbram, são talvez muito menos profundas e decisivas do que nós supomos».
E, depois de citar a União Soviética como exemplo típico de uma apenas aparente ruptura entre passado e futuro, verificando-se actualmente «a predominância nítida de elementos tradicionais da antiga Rússia» (um mundo burocrático e um terror policial semelhantes ao do czarismo), Octávio Paz apresenta o exemplo da revolução mexicana, «que nos leva igualmente a duvidar da pretensa aceleração da história», pois no México actual «estamos mais próximos da época do Vice-Rei e mesmo do mundo pré-hispânico do que da época da Revolução». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.

Cortesia do Instituto Camões/JDACT