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Revolução e Memória
«A alguns de nós,
portugueses de após o 25 de Abril, a chamada «Geração de 70» poderá parecer,
antes de mais, uma estranha geração de, digamos, revolucionários falhados. Ou
mesmo de revolucionários anti-revolucionários. Ou mais simplesmente: de
idealistas cépticos. Cépticos porque cultivaram, uns mais outros menos, o
cepticismo fin-de-siècle e por vezes altamente blasé do
pós-romantismo europeu. Idealistas, no sentido mais rigoroso do termo
(convicção de que o poder absoluto das ideias transforma o mundo), porque, cultivando
esse cepticismo, idealizavam ao mesmo tempo um Portugal que, de facto, nem
existia na época em que viveram – fim de uma monarquia provinciana, colonizada
social, económica e culturalmente pelos ingleses e pelos franceses e princípio
da formação de uma ideologia republicana positivista, pequeno-burguesa e
diletante – nem talvez tenha existido nunca.
Mas, se reflectirmos
bem, todo este paradoxal cepticismo-idealismo da Geração de 70 tem a ver essencialmente
com todo o grande drama do homem moderno, que é o drama da obsessão
revolucionária e das suas relações com o tempo.
De facto, se analisarmos
atentamente o comportamento político do homem moderno, ou, para ser mais
exacto, do homem ocidental desde o princípio do nosso século (e a Geração de 70
foi dele precursora em Portugal), somos levados a analisar o seu (essencialmente
inconsciente ou subconsciente) comportamento perante o tempo. Tentado pela
grande aventura ideológica da revolução total, universal, e não (pelo menos na
aparência) fundamentalmente nacionalista, o homem moderno, herdeiro directo do século
XIX e sobretudo da Revolução Francesa, parece querer esquecer o passado e com
ele o tempo «primordial» dos grandes mitos das origens. Ou antes, pretende
dominar este tempo «primordial» através de uma sistematização de ideias
revolucionárias que conduz à ideia-base de um fim absoluto da história, atitude
que, afinal, sobretudo no que diz respeito à ideologia revolucionária marxista,
se enraíza nos elementos propriamente judaicos do Cristianismo como esperança escatológica.
De certo modo, todo o
acto revolucionário é um acto de esquecimento. Através dele, recorre-se ao
instante de aparente convergência total do passado, do presente e do futuro
para esquecer o passado histórico de um país no seu todo, bem como o de uma
estruturação social – e mesmo o passado privado de cada indivíduo em si.
Melhor ainda: esquece-se
o passado no seu todo para o confundir com um futuro ainda inevitavelmente obscuro
graças à omnipotência de um presente igualmente obscuro mas pleno de promessas
miríficas, de valores utópicos. Mas até quando e até onde vai esse
esquecimento?
Não tarda muito que esse
esquecimento revolucionário fulgurante do passado colectivo e individual se
torne teologia terrorista baseada numa falsa continuidade histórica,
ideologicamente codificada e controlada (e é contra isso que, profeticamente,
se revolta um Dostoievski). Porquê? Por uma contradição fatal que está na base
de toda a revolução moderna, contradição que remonta aos grandes precursores do
romantismo revolucionário (a começar por Rousseau), os quais atacaram tudo o
que era não-racionalista e, portanto, pregaram a revolução total como solução
racionalista universal, para logo recusarem e até atacarem tudo o que na
revolução era sistemático, dogmaticamente racionalista, origem de um terror
revolucionário incontrolável, degradação ética, limitação burocrática e fanaticamente
partidária. O romantismo e o que se lhe seguiu consistiu, em suma, ao nível
histórico, nessa suprema contradição que foi a negação do Iluminismo, o qual
esteve na sua origem e do qual dependeu inteiramente. O que, no plano das ideias
e dos acontecimentos revolucionários, se traduziu em conflitos dramáticos que
se arrastam desde a Revolução Francesa de 1789 e desde começos do século XIX
nos países que a tomaram como modelo.
Assim, no que diz
respeito à nossa história, em especial à nossa história cultural e política, a
posição dos intelectuais portugueses da geração de 1830, a de Alexandre
Herculano, e a da geração de 1870, a de Antero de Quental, relativamente à
teoria e à prática da revolução difere, mantendo no entanto pontos comuns essenciais
em que, para lá da formação filosófica e política universalista que
caracterizou ambas, se denotam elementos específicos da história de Portugal.
De facto, para citar
apenas Herculano e Antero, ambos participam activamente em movimentos revolucionários
com ideias e com acções e ambos acabam por se retirar totalmente do palco da
história, profundamente decepcionados. Ambos recorrem ao esquecimento,
Herculano através do seu exílio voluntário de Vale de Lobos, Antero através do
«exílio» igualmente voluntário e definitivo do suicídio. Ambos, embora a níveis
muito diferentes de psiquismo pessoal, se recusam a aceitar a, digamos, memória
artificial, mecânica, de uma revolução que nunca chegou a sê-lo inteiramente, a
memória tornada praxis falsamente revolucionária. Ao Antero apolíneo e
hegeliano do Hino à Razão opõe-se o Antero nocturno e, afinal, sobretudo
baudelairiano (apesar da influência aparentemente predominante de Heine) das Primaveras
românticas e em especial destes versos:
Este coração cansado!
O que ele quer é
dormir
...O que ele quer é
deitar-se
No leito do
esquecimento.
(Ao luar)
No fundo, o que esquece
Antero? Esquece a própria memória e a sua função historicamente mediadora. Esquece
a própria memória – e nisto o seu esquecimento difere essencialmente do de
Herculano, o qual, tentando esquecer a decepcionante realidade da evolução
política, social e económica da Revolução Liberal de 1820, que acabou no
Fontismo, nem por isso renega o valor do movimento revolucionário em si como
recuperação de uma memória histórica que sucedesse ao esquecimento momentâneo
do passado e à visão utópica do futuro. Daí a sua idealização propriamente
romântica do Portugal pré-constitucional até 1385. Antero, pelo contrário, como
autêntico revolucionário que foi da Geração de 70 e, portanto, mentor de uma
utopia revolucionária mais próxima do século XX, intimamente ligada ao
niilismo, esquece a própria memória, nega-a na medida em que nega o Estado como
memória da nação, a Igreja como memória da alma, o partido como memória de
classe.
Este esquecimento,
anarquista no sentido mais absoluto do termo, que é no caso de Antero o de uma
anarquia hegeliana do espírito, envolvido momentaneamente na aceleração da
história, não pode conduzir senão à morte. Essa morte que está na raíz de uma
ilusória aceleração da história. Como diz Octávio Paz:
- «A aceleração do tempo histórico não passa de uma ilusão. As mudanças e as convulsões que, ora nos angustiam ora nos deslumbram, são talvez muito menos profundas e decisivas do que nós supomos».
E, depois de citar a União
Soviética como exemplo típico de uma apenas aparente ruptura entre passado e
futuro, verificando-se actualmente «a predominância nítida de elementos tradicionais
da antiga Rússia» (um mundo burocrático e um terror policial semelhantes ao do
czarismo), Octávio Paz apresenta o exemplo da revolução mexicana, «que nos leva
igualmente a duvidar da pretensa aceleração da história», pois no México actual
«estamos mais próximos da época do Vice-Rei e mesmo do mundo pré-hispânico do
que da época da Revolução». In Álvaro Manuel Machado, A Geração de 70 - Uma Revolução
Cultural e Literária, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual
Camões, Instituto Camões, Livraria Bertrand, 1986.
Cortesia do Instituto Camões/JDACT