segunda-feira, 9 de julho de 2012

O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Raul Rêgo. «Era escrito em língua italiana; e que achando o duque depois que aquele livro era mau, o queimara, segundo lhe dissera. E que também parece a ele testemunha que o dito Lucas d’Orta era inclinado à doutrina do dito livro “De Gratia et Fide et Operibus”»


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«E disse mais ele declarante que haverá sere ou oito meses, pouco mais ou menos, que estando ele declarante em casa do duque de Aveiro, aqui nesta cidade, veio ter um recado de Lucas d’Orta para o duque de Aveiro, o qual Lucas d’Orta é deão da Guarda, no qual recado, entre outras coisas, o dito Lucas d’Orta mandou ao duque certos volumes de livros de Lutero e Colampádio sobre a Sagrada Escritura. E que lhe parece a ele testemunha que eram seis ou sete volumes.
E, sendo perguntado que volumes eram e sobre que partes da Sagrada Escritura, disse que eram sobre toda a sagrada Escritura, assim sobre o Testamento Velho como sobre o Testamento Novo, e que uns dos ditos volumes eram de Lutero e outros de Colampádio; e que ele testemunha leu os títulos dos ditos livros, e os abriu, e, vendo que eram de Lutero e Colampádio, disse ao duque que os não podia ter.
E então o duque os deu e entregou a ele declarante para que os queimasse, e que ele testemunha os queimou e rompeu, e gastou. Somente deu um livrinho deles ao padre frei Jorge, Inquisidor de Lisboa, o qual livro era de Melanchton. E que também o mesmo Lucas d’Orta mandou um livro ao mesmo duque de Aveiro, o qual era escrito de mão e o qual livro tratava de uma nova opinião que em Itália se trata, a saber “De Gratia, Fide et Operibus”. E assim mandou outro livro de um católico, o qual se chama ‘frater Ambrosius Catherinus’, o qual escreveu também contra Lutero, o qual livro era contra as opiniões do livro escrito de mão “De Gratia et Fide et Operibus’. E que ele testemunha disse ao duque que aquele livro escrito de mão era de má doutrina.
Era escrito em língua italiana; e que achando o duque depois que aquele livro era mau, o queimara, segundo lhe dissera. E que também parece a ele testemunha que o dito Lucas d’Orta era inclinado à doutrina do dito livro “De Gratia et Fide et Operibus”, segundo nele via e em suas práticas entendia. E que isto é o que lhe ao presente lembra; e que se outra coisa lhe lembrar que o dirá.
E que, acerca do que ele testemunha diz de Lucas d’Orta, a saber, dos Livros, se pode tomar informação do duque de Aveiro, e que diz isto por descargo de sua consciência e por serviço de Nosso Senhor, e não por ódio ou inimizade que tenha a nenhum dos susditos, porque lhe não tem, mas antes são todos grandes seus amigos e ele testemunha deles. E foi-lhe mandado ter secreto sob cargo de juramento que recebeu, e ele assim o prometeu e assinou aqui juntamente com o senhor inquisidor. Garcia Lasso, Notário Apostólico e da Santa Inquisição (maldita) que o escrevi.


Nova Denúncia de Mestre Simão
E depois disto, aos sete dias do mês de Setembro do dito ano de mil quinhentos e quarenta e cinco anos, em Évora, nas Casas do Despacho da Santa Inquisição (maldita), estando aí o senhor licenciado Pedro Álvares de Paredes, Inquisidor Apostólico neste arcebispado de Évora e sua comarca, etc., perante ele pareceu o dito padre Mestre Simão e disse que ele é mais acordado que, ao tempo que ele praticava com o dito frei Roque, em Pádua, como dito tem, que praticaram “de votis monasticis”, à qual prática estava também presente o dito Damião de Goes, a seu parecer.
E que, falando na dita matéria, o dito frei Roque afirmava que, ainda que um frade ou outra qualquer pessoa que tivesse feito voto de castidade, e sentisse em si, depois de feito, que o não podia guardar, que “non erat transgressor vir”, posto que não guardasse o voto que assim tivesse feito. E que isto dizia o dito frei Roque com muita veemência e como homem que assim o tinha e cria para si; e assim o disputava e defendia, alegando a este propósito aquela autoridade de São Paulo que diz “melior est nubere quam uri”, e outras muitas razões de que ele testemunha, ao presente não é acordado. E que ele testemunha lhe argumentou e resistiu a isso quanto pôde, mas que nunca pôde tirar o dito frei Roque daquela opinião. E nela ficou.
E que isto é o que lhe lembra ao presente, e jurou aos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão, que isto que agora diz assim mesmo é verdade; e que isto passou também no mesmo tempo que na primeira sua deposição tem declarado. E mais não disse. Foi perguntado se o dito frei Roque e Damião de Goes, ambos juntos ou cada um de ‘per si’, ao tempo que diz que comunicava com eles sobre as heresias de Lutero, se os susditos ou algum deles o induzia e aconselhava, ou persuadia, que ele declarante tivesse os erros e opiniões de Lutero contra o que tem a Santa Madre Igreja de Roma e se lhe prometeram e fizeram algumas promessas. Por isso que diga a verdade e inteiramente descarregue sua consciência.
Disse ele testemunha que o que compreendeu do dito de frei Roque e Damião de Goes é, segundo seu parecer, pelo que lhe diziam e neles via que eles queriam trazer a ele declarante às suas opiniões tinham contra o que tem a Santa Madre Igreja; e que ele testemunha tinha os susditos ambos de dois por luteranos, por as coisas que lhe via dizer e afirmar dos erros de Lutero». In Raul Rêgo, O Processo de Damião de Goes na Inquisição, Assírio & Alvim, 2007, ISBN978-972-37-0769-4, Peninsulares/57.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT