sábado, 28 de julho de 2012

Leituras. Os Venturosos. Alexandre Honrado. «Ataíde passava a maior parte do tempo a interrogar-se, a pensar, a suspirar, e a produzir ideias funestas. Umas vezes ralava-se por ser assim, em outras era assim que se sentia bem. Pensava de mais… Um desperdício…»


Terceiro casamento de Manuel I. Garcia Fernandes, 1541
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‘Mas não m'hão-de fazer crer
que não há mais nesta vida
senão nascer e morrer’.
Sá de Miranda, in ‘Cancioneiro Geral

«Havia uma bacia de pedra no centro do claustro onde Ataíde, muito cheio de salgados e húmidos humores, aproveitando a água de chuva antiga que na bacia se mantinha, refrescou as faces coradas. Projectado o rosto nessa água, e se atentarmos nele, podemos vê-lo, a este Ataíde. Dir-se-ia uma menina, é tão donzel, tão pétala fresca, tão maracotão. pois exactamente parece essa mesma variedade rara de pêssego… que, tirando o trajo, bem podia passar por mocinha nova, dessas de corpito miúdo e peitinhos por encher.
Agora por peito, traz, ainda como moçoila o farra, um raminho de finíssimas minúsculas florinhas ali mesmo, por alturas do coração, inclinado à canhota: trata-se da extremidade de um cacho de flores púrpura-vermelhada. Dedaleiras, assim chamadas por terem a forma de luva. Normalmente, estão em flor mesmo junto à borda de água, e foi exactamente aí que Ataíde as colheu.
Porém, isso fora há muitas horas, e já caminhara tanto depois disso… Estava em fogo, num suadoiro que o mortificava. E claro que poderia ter-se acoitado, mas todas as sombras que avistara estavam ocupadas por gente, e ele, ele não era de partilhas...
Explique-se: a vida tinha para com este Ataíde muita acrimónia, uma acidez que nunca se lhe justificara, e de cujas origens nada sabia. Dava-se apenas bem, e mesmo assim bem pouco, com seu natural solipsismo…
É este Ataíde de muito boas famílias, vive no palácio real, já sua ascendência tinha pergaminhos altos…
Porém…
Não tem garra, nem coragem, detesta coisas de cavalaria e caçadas e pelejas, não quer saber de viagens, descobrimentos, achamentos ou artes de mercar, detesta intriga, de corte seja ela palaciana, de amores ou das políticas, em suma prefere passear pelos campos e colher flores delicadas, ouvir alguma poesia e o tanger de alaúdes, acompassar ele próprio, mas se estiver só, pois morreria da timidez de se ver exposto se tal ousasse…
Sentia-se Ataíde, no entanto e uma vez por outra, de alma preparada para sucessos edificantes. Todavia, na hora em que a verdade deparava a hipótese de os cometer, recuava como asno puxado a bridão... E, regra geral, sufocava-se.
Mesmo no Evangelho, Mateus, 26,40 ‘spiritus est, caro autem infirma’, até o Cristo criticou os débeis:
  • O espírito está pronto, mas a carne é fraca, disse Ele.
Ataíde passava a maior parte do tempo a interrogar-se, a pensar, a suspirar, e a produzir ideias funestas. Umas vezes ralava-se por ser assim, em outras era assim que se sentia bem. Pensava de mais… Um desperdício…
Triste sina a sua. Uma ideia, no entanto, reconfortava-o. Se não fora feito para grandes façanhas, de leito, de corte ou de oceanos, tudo levava a crer que não as faria nunca, nem a elas seria assim obrigado. Isto, só por si, era tranquilo e fazia-o retomar a paz interior quando se sentia mais perdido ou agitado.
Verdade indiscutível, cuidava ele: nada perturbaria a sua rica vida.
Era assim que cuidava enquanto se refrescava, nesse dia em que o revelamos, na aguinha tépida da chuva antiga guardada em bacia de pedra». In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT