terça-feira, 10 de julho de 2012

O Músico Cego. Vladimir Korolenko. Leituras. «Sentia-se um cavaleiro derrubado da sela pela vida e caído no pó. Não será uma pusilanimidade torcer-nos no pó como um verme esmagado e agarrar-nos ao estribo do vencedor, suplicando-lhe os míseros restos da nossa própria existência?»



Cortesia de wikipedia

«Naquela altura, quando na casa rural nasceu e começou a crescer o novo ser humano, a cor grisalha já campeava no cabelo curto do tio Maksim. Os ombros haviam-se-lhe alteado por causa do uso permanente das muletas, o tronco adquirira uma forma quadrada. A estranheza do seu aspecto físico, o sobrolho severamente carregado, o bater das muletas e as nuvens de fumo de tabaco com que ele se rodeava permanentemente porque não tirava o cachimbo da boca, tudo isso assustava os estranhos, e apenas os familiares do inválido sabiam que no seu corpo aleijado batia um coração caloroso e cheio de bondade, e que na sua grande cabeça quadrada, coberta de cabelo espesso e cerdoso, o pensamento trabalhava incansavelmente.

Porém, nem as pessoas mais chegadas sabiam em que problema trabalhava aquele pensamento. Viam apenas que o tio Maksim, envolto em fumo azulado, passava por vezes horas a fio sentado, imóvel, com olhos enevoados e o espesso sobrolho soturnamente carregado. Ora bem, o combatente mutilado reflectia na vida, matutava na luta que era a vida e que nela não havia lugar para os incapacitados. Passava-lhe pela mente que já abandonara as fileiras para sempre e estava a ocupar inutilmente um lugar no comboio da retaguarda; sentia-se um cavaleiro derrubado da sela pela vida e caído no pó. Não será uma pusilanimidade torcer-nos no pó como um verme esmagado e agarrar-nos ao estribo do vencedor, suplicando-lhe os míseros restos da nossa própria existência?
Enquanto o tio Maksim, com uma fria coragem, remoía esta ideia pungente, raciocinando e confrontando os prós e os contras, começou a relancear perante os seus olhos uma nova criatura que o destino lançara no mundo já incapacitada.
De início, não prestava atenção à criança cega, mas depois uma estranha semelhança do destino do garoto com o seu próprio despertou interesse no tio Maksim.
- Humm... pois - disse uma vez pensativamente, olhando para o miúdo de soslaio, este rapazinho também é inválido. Se nos juntassem aos dois talvez déssemos um homenzinho mais ou menos. Desde então, os seus olhos começaram a pousar cada vez mais na criança.

A criança nasceu cega. Quem tinha culpa do seu infortúnio? Ninguém! Não havia sequer a sombra de qualquer ‘má vontade’, e a própria causa da desgraça se escondia nas profundezas dos misteriosos e complicados processos da vida. No entanto, sempre que a mãe olhava para o filhinho cego, o seu coração apertava-se numa dor dilacerante. Era óbvio que, sendo mãe, se repercutiam nela, dolorosamente, a deficiência do filho e um sombrio pressentimento do futuro penoso que lhe estava destinado; mas, para além destes sentimentos, a consciência de que o germe da desgraça poderia estar, terrível probabilidade, naqueles que lhe deram a vida, fazia agonizar o coração da jovem mãe... Era esta a razão por que a criaturinha dos olhos maravilhosos mas cegos se tornara o centro das atenções da família, um déspota inconsciente a cujos caprichos, mínimos que fossem, se ajustava a vida de toda a casa.
Quem sabe no que viria a transformar-se aquele rapaz, predisposto, na sua desgraça, a um raivoso ressentimento e, por tudo o que o rodeava, sujeito a um egoísmo galopante, se o excêntrico destino e os sabres austríacos não tivessem obrigado o tio Maksim a instalar-se na aldeia, em casa de sua irmã». In Vladimir Korolenko, O Músico Cego, Arbor Litterae, 2010, ISBN 978-989-8292-30-8.

Cortesia de Arbor Litterae/JDACT