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«Se tivermos sobretudo em conta a formidável estatura moral e cívica do
solitário de Vale de Lobos, logo se nos patenteia a importância do juízo
emitido pelos homens da geração de 70 acerca do grande historiador romântico:
deste confronto de duas gerações ressalta afinal o encontro de duas ópticas,
dois vectores ideológicos e, por fim, duas radicais atitudes perante a
problemática portuguesa. Em que medida elas diferiram, colidiram ou, ao invés,
se ajustaram, eis o que agora nos interessa sublinhar através de um rápido
inquérito quanto aos diversos, e tão divergentes, juízos emitidos pelos
componentes da geração de 70 em relação ao autor de Eurico. Embora resulte
fastidioso inventariá-los todos, não podemos deixar de recolher as opiniões
mais significativas, aqui resumidas, por comodidade de exposição e acanhamento
de espaço, aos juízos de certas figuras cimeiras como Antero, Eça de Queiroz,
Junqueiro, Anselmo de Andrade, Ramalho, Teófilo, Adolfo Coelho, e sobretudo,
Oliveira Martins. Com efeito, como seria de esperar, o diferendo entre os
homens de 70 e a postura ética e cívica herculaniana ganha especial e
transcendente teor ideológico quando os polos em presença são nada menos do que
os dois grandes vultos da historiografia portuguesa do oitocentismo, ou seja, o
autor da “História da Origem e Estabelecimento da Inquisição (maldita) em
Portugal” e o do “Portugal Contemporâneo”, isto é, duma banda o liberal
convicto, irredutível e extremo, da outra o socializante proudhoniano e
republicanizante (depois trânsfuga de parte desses ideais); além João de Castro
da burguesia romântica portuguesa, o verdadeiro Gulliver estóico do nosso
Lilliput constitucional, aqui o futuro candidato a César dum utópico socialismo
de Estado sob a protecção brigantina. Em suma, afinal dois vencidos da vida que
se olham através do fosso das gerações e das ideologias, o primeiro de todo
desenganado, acolhido a Vale de Lobos, ‘essa pátria espiritual de todos os espíritos
protestatórios que desde então até agora têm aparecido no País’ (A. Sérgio), o
outro sucumbindo à tentação da Política, descendo com todo o seu saber e
impaciência de reformador idealista à cova dos leões e dos agiotas, para de lá
sair ferido, exangue, alquebrado, definitivamente “vencido”. Mas não
antecipemos este diálogo entre aquele que nunca quis ser ministro dos Braganças
e aquele que se deixou embalar pela tentação ministerial. Comecemos pois pelo início,
recordando o passo capital que coloca Herculano, já retirado para o exílio de
Vale de Lobos, em sintonia com os anseios da geração de 70: o seu vigoroso
protesto, de raiz aliás acentuadamente religiosa e desenvolvendo-se todo em considerandos
teológicos e políticos em torno da questão Igreja-Estado, por ocasião do
encerramento das Conferências Democráticas do Casino, em Junho de 1871, texto que
pode ser procurado no vol. I dos “Opúsculos”, dado pela primeira vez à estampa
em 1873, ainda em vida do autor (que só faleceu em 1877), texto solicitado aliás
por um empregado da Livraria Bertrand, o luso-suíço José Fontana, ao qual o
referido escrito foi dedicado (a dedicatória resume-se num ‘A J. F.’ muito
lacónico). Apesar de tão vibrante protesto contra a medida do marquês de Ávila
e Bolama, o que lhe valeu o habitual ladrar da canzoada clerical ultramontana, entre
os mastins que mais latiram às canelas do austero lavrador anacoreta
salientemos o nome do gazetilheiro José Maria S. Monteiro (1810-1881), autor
duma obra dada à estampa em 1875, com o título bem cristão de “Duas Obras de
Misericórdia (Ensinar os Ignorantes e Castigar os que Erram) ou Enérgica
Refutação do Opúsculo do Snr. A. Herculano a Propósito da Supressão das Conferências
do Casino”, apesar, dizíamos, de ter de novo incorrido nos pios furores do
reaccionarismo catolicão da altura, Herculano não logrou atrair todas as
simpatias da tribo rebelde que tentara leccionar o País do alto do Largo da
Abegoaria, naquele tão curto mês que medeou entre Maio e Junho de 1871.
Vê-lo-emos mais adiante: mesmo esta defesa incluída nos “Opúsculos” foi
vilipendiada por um estudioso e crítico republicano que o solitário da Azóia escalabitana
classificara uma vez de ‘ratão’, arquiagredido Teófilo Braga, o intelectual
português mais difamado ao longo de todo o nosso oitocentismo e começos do
novecentismo.
Comecemos porém o nosso breve inventário dos juízos acerca de Herculano
dividindo a falange guerrilheira de 1871 em três grupos, os que simplesmente
admiram a obra e a acção de Herculano, os que o condenam com biliosa e cega
ojeriza, por fim os que lhe votam uma estima toda crítica, vigilante e
fundamentada. Digamos sucintamente que ao primeiro grupo pertencem Antero,
Junqueiro, Anselmo Andrade e Eça, ao segundo lote Teófilo, Ramalho e Adolfo
Coelho, situando-se no terceiro, densíssima de conteúdo, a crítica que Oliveira
Martins ergueu em torno do seu confrade romântico. Sigamos, pois, o roteiro
agora sumarizado, começando pelos que realmente o estimaram e aplaudiram, ou
seja o herculaniano Antero e Junqueiro, mais Anselmo Andrade e certo travesso
demónio de monóculo». In João Medina, Herculano e a Geração de 70, Edições
Terra Livre, Lisboa, ano IV da Liberdade, 1977.
Cortesia de Terra Livre/JDACT