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Modelos da expansão portuguesa quatrocentista
«Como Álvaro de Campos ‘pertenço a um género de portugueses/que depois
de estar a India descoberta/ficaram sem trabalho’. E descoberta não só pelos
homens dos séculos XV e XVI mas também por investigadores, polígrafos,
jornalistas, políticos, patriotas.
Sirvam de desculpa às palavras que afinal emprego os deveres que me
cabem por ofício.
Conceitos, títulos, intenções
Se nos textos publicados no último meio século isolarmos as palavras e
conceitos fundamentais, verificamos que no xadrez das combinações alguns
conceitos envelheceram, outros mudaram de lugar e novos conceitos entraram no
tabuleiro. Lembramos Infante, sigilo, Escola de Sagres, caravela, evangelizar,
espírito de cruzada, propagação da fé, curiosidade científica, estratégia planetária
antimuçulmana e antiturca, trigo, ouro, escravos, bases marítimas, descobrir,
colonizar, humanismo, comércio, conquista, corso, classe, cavalaria, nobreza,
burguesia, cavaleiros-burgueses, dialéctica do outro e do mesmo, o nu e as
vergonhas, o Preste João das Índias, o mito.
Esta enumeração incompleta mostra, a nosso ver, como a ciência da
História evoluiu neste tempo em Portugal: ao lado de uma história criadora e
justificadora de heróis e chefes avançou a História Económica, a História
Social, a História das Mentalidades. Estes vocábulos revelam, em segundo lugar,
como na explicação histórica se introduzem continuamente conceitos formulados
em época diferente da época em análise. O contemporâneo cerca a nossa visão do
passado. O anacronismo vive de não identificarmos e definirmos os conceitos,
está no confundir dos planos, está no baralhar o presente e o passado no mesmo
baralho.
Textos recentemente publicados insistem na ideia-força de que Portugal
como pioneiro das Descobertas Marítimas da época moderna se alçou logicamente a
país de vanguarda nos descobrimentos científicos e tecnológicos dos séculos XV
e XVI. Esta ideia-força tem muito a ver com a campanha política em curso sobre
a necessidade da modernização e da revolução tecnológica. No entanto, esta
coincidência ‘pecadora’ não invalida nem a importância cimeira que cabe ao
conhecimento científico e ao desenvolvimento tecnológico na marcha da Humanidade
nem nega que alguns portugueses dos séculos XV e XVI foram em diversos campos –
na Ciência Náutica, na Geografia, na Botânica, na Zoologia, na Medicina, na
Antropologia, até na Teoria do Conhecimento - pioneiros com outros homens no
conhecimento paracientífico e tecnológico do seu tempo. O rei João I, o monarca que iniciou a empresa sistemática das conquistas
e descobrimentos além-mar, intitulou-se senhor de Ceuta.
NOTA: A conquista de Ceuta, os achamentos de Porto Santo, da Madeira e
das primeiras ilhas dos Açores ocorreram sob o seu governo. A primeira
expedição às Canárias em 1424 foi custeada pelo erário régio e não pelo do
infante Henrique ou pelo da Ordem de Cristo. Na carta oficial que assinala o
povoamento e colonização da Madeira é o nome do rei João que figura no frontispício.
O mesmo título usou o rei Duarte. Afonso V alargou-o para ‘rei de
Portugal e dos Algarves daquém e dalém-mar em África’. João II intitulou-se
pela primeira vez senhor de Guiné. Por sua vez Manuel I aumentou
extraordinariamente as fardagens dos títulos:
‘Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém-mar em Africa, senhor da
Guiné, da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e India’.
Parece concluir-se que nos séculos XV e XVI os reis de Portugal não
acharam necessário intitularem-se senhores das ilhas atlânticas, do Brasil ou
de Malaca. Também não sentiram necessidade de se intitularem arautos da Fé,
embora a fé cristã impregnasse o ar ideológico que respiravam. Intitulavam-se,
isso sim, senhores de terras e regiões, umas que controlavam e outras que
desejavam possuir e controlar; e intitulavam-se senhores da conquista futura e razoavelmente
da navegação e do comércio nos mares atlânticos e índicos, no ‘nosso mar’ que
ia do Bojador ao Oriente Extremo.
Senhorio, conquista, navegação e comércio são, pois, conceitos-chave que
definem as intenções e a prática dos nossos monarcas dos séculos XV e XVI.
Lezírias de Guiné e bulas papais
Mas regressando ao século XV. Numa primeira abordagem, a evocação dos
títulos sugere a secundarização da Guiné face ao Algarve dalém-mar e
indirectamente a secundarização dos Descobrimentos Marítimos face às conquistas
do norte marroquino.
Até à regência do infante Pedro, as viagens de descobrimento, mesmo
tendo em conta o início da colonização da Madeira e a descoberta de algumas
ilhas dos Açores, estão em segundo plano nas preocupações dos dirigentes
políticos». António Borges Coelho, Clérigos, Mercadores, Judeus e Fidalgos, Questionar
a História, Colecção Universitária, Editorial Caminho, 1994, ISBN
972-21-0957-X.
Cortesia da Caminho/JDACT