segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A Cultura Integral do Indivíduo. Problema Central do Nosso Tempo. 1933. Bento de Jesus Caraça. «No seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários, “o individual e o colectivo”, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio, “o individual”, chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no “segundo”»

Feliz Ano Novo
2013

jdact e cortesia de wikipedia

Época singular! Em que podemos assistir às manifestações do mais alto poder criador e do mais persistente esforço de sistematização -Einstein e Broglie, e, paralelamente, à desorganização total da vida económica e à destruição deliberada precisamente daquilo de que a maioria carece.



Época em que é possível um tal campear do cinismo que um ministro holandês propõe, numa conferência internacional, a interdição do bombardeamento aéreo do inimigo em tempo de guerra, para que alguns dias depois um avião holandês lance, sobre um barco holandês, em tempo de paz, uma bomba que semeia a morte a bordo [Estávamos, nessa altura, em 1933. O cinismo campeava já, mas não tinha sido ainda arvorado em método político. Largo caminho andado nestes seis anos]; mas em que é também possível um tal florescimento de virtudes, que um homem, velho e fraco, consegue, quase só com o poder da sua alma que é forte, agitar milhões de homens num esforço de emancipação nacional e, o que é mais, de libertação de uma casta dos preconceitos que a escravizam, excluindo-a do convívio humano.


Época em que se verifica um tão grande desprezo pela existência alheia que na sombra se prepara, metodicamente, sistematicamente, cientificamente, a destruição do homem; mas em que ao mesmo tempo existe uma tal admiração pelo corpo humano que, num vasto movimento de cultura física, ele se enaltece e glorifica no que tem de nobre e belo-antítese simbólica do nosso tempo: preparação da guerra química e salão do nu fotográfico.


E é numa época assim, tão intimamente trabalhada por antagonismos irreconciliáveis, que se pretende vir falar-vos num problema central? Não estará errado pela base o título e intenção desta conferência? É o nosso tempo susceptível de mais do que de pequenos problemas parcelares sem conexão uns com os outros e reflectindo, na sua pulverização, o amorfismo actual?



É a estas perguntas, que a mim mesmo tenho posto com angústia, que vou procurar dar uma resposta. Para ela, não reivindico outra categoria de valor que não seja a honestidade com que foi procurada. Sei demasiado, para que outro mérito pretenda ver-lhe atribuído, quanto são falíveis ainda os juízos mais prudentes, e, se não receio o erro, é só porque estou sempre pronto a corrigi-lo.



Do mesmo modo que é impossível, pelo simples exame de alguns minutos, descobrir, no bater das ondas numa praia, o movimento regular das marés, assim também quem se detiver na contemplação de um único momento histórico não poderá surpreender o ritmo da evolução que o determina e condiciona. Num como noutro caso, só o recuo que forneça aos fenómenos uma perspectiva adequada pode permitir um estudo objectivo da sua natureza e significação.



No primeiro, algumas horas bastam; no segundo, é todo o largo período da história da humanidade que se torna indispensável abraçar numa apreciação de conjunto. Vejamos se nos aparece assim, ao menos nas suas linhas gerais, alguma lei à qual se subordine todo o desenvolvimento que a história nos apresenta ao longo do extenso caminho percorrido, desde o aparecimento dos primeiros agrupamentos humanos até às sociedades de hoje. Creio que essa lei existe e que pode formular-se, pouco mais ou menos, nos seguintes termos:
  • No seio das sociedades humanas manifestam-se permanentemente dois princípios contrários, o individual e o colectivo, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades, em que o primeiro princípio, o individual, chegado a um elevado grau de desenvolvimento, se absorverá no segundo.
In Bento de Jesus Caraça, 1933, União Cultural Mocidade Livre, Cadernos da Seara Nova, 1939. Cortesia de Seara Nova


Bem-haja para Todos
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Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «Num universo sem antibióticos ou analgésicos, todas as armas são válidas na luta diária contra a doença e o terrível e prolongado (e as mais das vezes fatal) sofrimento que ela traz»


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O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
«Nas universidades, o predomínio de membros do clero entre o seu corpo docente e discente, a vivência diária de professores e alunos, o tipo de cursos e curricula, a orientação científica dominante fazem destas instituições um espaço de produção e de transmissão do saber submetidas a certo tipo de limites e condicionamentos. Acresce que a produção e difusão de obras culturais, qualquer que seja a sua natureza, estão sujeitas, através das visitas às livrarias e aos Índices de Livros Proibidos, à censura e ao controlo estritos da Inquisição (maldita).
Um dos aspectos da vida quotidiana profundamente marcados pela religião prende-se com os hábitos alimentares. A Igreja estabelece permissões e proibições, calendariza a comercialização e ingestão de alimentos. O não cumprimento da abstinência na Quaresma é punido na jurisdição civil. Em contrapartida, a rejeição de alimentos consumidos normalmente por cristãos é motivo de perseguição religiosa, sob a acusação de judaísmo ou maometismo.
Permissões e proibições em matéria alimentar interferem enormemente na vida social e nas condições de vida das comunidades. Formas de vigilância e repressão, elas têm também reflexos sobre o custo de vida, de que é exemplo o aumento dos preços do peixe na Quaresma e a sua venda muitas vezes em condições impróprias para o consumo. Quem melhor caracteriza esta situação é Erasmo de Roterdão, ao observar:
  • ...um montão de gente para quem o essencial da piedade se liga a lugares, a vestes, a alimentos, a jejuns, a gesticulações, a cantos e que se apoiam sobre todas essas coisas para julgar o próximo, à margem dos preceitos evangélicos... (Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura)
Outro elemento do quotidiano importante são as práticas de higiene, que parecem, contudo, ser mais condicionadas pela vertente material que pela espiritual. Este aspecto é aquele em que é mais notória a distinção social. O conceito de higiene da Antiguidade Clássica, com banhos regulares em estabelecimentos públicos ou em privado, altera-se completamente ao longo da Época Medieval, e mais ainda na Época Moderna. Contribuem para esta mudança, por um lado, o medo generalizado do contágio de doenças altamente mortíferas como a peste e a sífilis, ou ainda as superstições ligadas ao próprio corpo. Por outro lado, dá-se o encerramento dos banhos públicos pela Igreja, com base no argumento de serem ambientes utilizados para a prática da prostituição e de outros comportamentos sexuais proibidos. Pesa ainda a desconfiança da água em geral, originada pela consciência de que a água insalobra é uma fonte de todo o tipo de moléstias. Por seu turno, os próprios médicos desaconselham o banho, sob o pretexto de que, dada a porosidade da pele, o banho ajuda à propagação das doenças, o que leva as populações a olhar a sujidade que os recobre como uma armadura, a sua cota de malha contra esse terrível inimigo que é a peste. Num universo sem antibióticos ou analgésicos, todas as armas são válidas na luta diária contra a doença e o terrível e prolongado (e as mais das vezes fatal) sofrimento que ela traz.
Profundamente associadas a esta problemática estão as concepções acerca do corpo e, recorrentemente, as concepções sobre o sexo. No que diz respeito ao prazer físico e à actividade sexual, não existe qualquer diferenciação social. Podemos dizer que perante os constrangimentos religiosos sobre estas matérias, todos são iguais. O corpo é material, terreno e carnal e, segundo a ética cristã, deve funcionar apenas como invólucro da alma, e meio de procriação da espécie. Mas é também, e talvez mais frequentemente, fonte de pecado, apelo constante aos prazeres carnais, à sensualidade e à volúpia.
Durante o século XVI, desenvolve-se uma verdadeira campanha contra todas as formas de nudez, sexualidade, ou prazeres carnais vividos por si só, sem a intenção de procriar, apoiada inclusivamente pela acção inquisitorial. Esta vigilância rigorosa envolve os comportamentos do homem comum, mas também os valores estéticos da arte, e assistimos ao progressivo desaparecimento da nudez na pintura e na escultura. À perfeição e realismo anatómicos dos artistas da Renascença, sobrepõem-se agora véus e panejamentos, instalando-se um exacerbado pudor sobre todas as coisas concernentes ao corpo e à sensualidade». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da U. do Porto/JDACT

O Deserto Habitado. Júlio Conrado. Leituras. «‘Entro’, como assim? No circuito da luta, beijo o pó das amoras, cresço para a névoa roxa. Sei que não resulta, mas finjo entrar, dando-te a entender que ingresso de facto nesse capitoso universo marcado pela juventude do teu desejo»

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«Amo-te, Magda, e sigo nu, por ti arranho o sexo nas silvas, rojo nos espinhos o corpo envergonhado, sinto-os fundo na carne, fazem, a seu modo, justiça, a Cidade Nova não se consterna nem se prostra ao ingresso dos aspirantes a Homem. Por ti me rasgo nos arbustos, até ficar reduzido a uma ridícula bosta de sangue. Caminho aos sacões. Sei que a Cidade Nova se agachará de gozo, dobrada sobre o ventre, mãos nos testículos e respiração suspensa, aberta numa monstruosa gargalhada de nojo. Não estenderá um dedo para me dar apoio se eu vacilar. Do que a Cidade Nova precisa é de braços que a reconstruam, dirão, não é de balões de soro, mas de murros, a necessidade, querem matadouros de carne segura, vesga, infantil, que reduza a humanidade aos lábios grossos duma vagina por perfurar e a perfure, a liberte do gesso endémico da hereditariedade. Aceito, vês, a responsabilidade dos passos preliminares. Comecei, portanto, diligente e de boa-fé como um escuteiro ajuizado, a experimentar na pele e na alma as arranhadelas das silvas sobre as quais me rebolo despido. Aqui para nós, Magda, as silvas são para os donos da Cidade Nova meros crivos experimentais. Um sinal amarelo, indicativo de prudência, relato, informe, currículo, anos de tortura e de cadeia. Sabes que não reúno as condições, mas não hesitaste em me submeter às provas. Não entrarei nela, cidade, deixa-te de peneiras. Mas acompanhar-te-ei até ao fim, Magda. Paradoxalmente, não te perderei de vista, pois não estás tu sentada a meu lado neste 'tribunal? E até receberás dos meus lábios os cravos que hão-de suavizar-te os últimos momentos.
‘Entro’, como assim? No circuito da luta, beijo o pó das amoras, cresço para a névoa roxa. Sei que não resulta, mas finjo entrar, dando-te a entender que ingresso de facto nesse capitoso universo marcado pela juventude do teu desejo. Prefiro-te, de resto, Magda, nua pelas dunas, em correrias loucas, ou então pondo termo frugalmente a essa magnífica trégua da anunciação do amor no choque dos nossos corpos admirados e súbitos, nossos derradeiros tecidos espraiados num luar de fúria ou de curiosidade enfim resolvida. Como se a viva cumplicidade sensual partilhasse da descoberta de outros padrões de conhecimento ou uma nova sabedoria nos mostrasse a verdade maior de cada instante de futuro. Prefiro rever-te de silhueta esbatida na fosca moldura à beira-mar, com luzes de barcos em círculo lá longe, remos e proas minúsculas, bóias suspensas, na ruína dos seus austeros e diluídos rostos nocturnos. Entre sombras de maré baixa, fantasmas imaginados, âncoras e apetrechos de pesca, nos arrependíamos de mais cedo não nos termos dado, fazendo com nossas mãos a alegria, com nossas bocas o cio, com nossos sexos o júbilo, com nosso entusiasmo o rito, com nossos joelhos, ombros, seios ou fanes a melodia do movimento, com nossos cérebros o poema, com nosso vulcão solto uma espécie de hino remoto, livre, rouco, total. Foi bonito de ver-se, Magda, como naqueles minutos plenos nos compreendíamos, certos de estarmos a cerzir rasgões milenários, donde naturalmente nos vinha a loquacidade do entendimento, a flor do riso, cântico e sémen da claridade. Fomos capazes de estabelecer uma bem sólida ponte sobre os destroços das nossas angústias tão contraditoriamente situadas, dos nossos degredos tão distantes e tão próximos. Chegou a ser belo! Mais tarde, instaurada a era da luz, músculos lassos, consentíamos na troca dos troféus. Eram gestos simples e palavras importantes. Enquanto deixavas escapar de entre os dedos para o meu tronco suado um delgado corrimento de areia, ias sondando as minhas intenções e a minha audácia, dizendo que ‘era preciso as pessoas fazerem coisas’, ao que eu respondia vagamente ‘Sim, tens toda a razão, meu amor’, suspeitando já que pessoas, na circunstância, eram ‘eu’ e ‘tu’ e me propunhas estranhos compromissos, doridas tarefas. Escutava calmamente o que dizias. Não dava respostas nem fazia comentários.
Beijava-te os mamilos. Retraías-te, parecias contrariada, acabavas a rir. Eis como te desviava da conversa incómoda, a que eu invariavelmente fugia. Que resta em mim da nossa esplêndida ligação? Talvez este ódio macio, verdadeiro gume oculto por detrás dos sorrisos opacos, dos silêncios ambíguos, face à recusa duma página em branco, onde os signos se acumularão em desordem, antes de a máquina os arrumar muito serenos e pomposos uns ao rés dos outro, como se tivessem nascido já assim perfilados, rectos, perfeitos. Contudo: Como passa, Sra Doutora? - E não se segue um beija-mão porque não calha, seria de péssimo gosto o intelectual progressista abandonar-se com tanto descaro aos maneirismos das pessoas bem da Vila.
A folha branca não deixaria, não deixará, de acolher, em todo o caso, o registo da exemplaridade, o horror aos vícios, aos salamaleques dos seres organizados, embora fosse com elas, com as pessoas bem, que eu há três meses emparceirava nas digressões pelos montes a beberricar velhos néctares». In Júlio Conrado, O Deserto Habitado, Prelo Editora, Lisboa, *06542*,1974.

Cortesia de Prelo/JDACT

Estudos sobre a Ordem de Avis. Séculos XII-XV. Maria Cristina A. Cunha. «… a existência de algum mal-estar entre a instituição hospitalária e a monarquia portuguesa data do início do reinado de Afonso II, tendo como motivo a posse da terra de Bouças e outra vila, que haviam sido doadas por D. Mafalda…»


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«[…] A larga faixa dominada pelos templários junto à fronteira leonesa, associada ao controle do território junto ao Tejo, até Tomar, se por um lado, permitia a preponderância dos cavaleiros portugueses na estrutura provincial da Ordem, isto é, a referida “lusitanização”, por outro, podia vir a criar problemas graves ao monarca português em caso de guerra com o reino vizinho. Afonso II confiou ao mestre templário a chefia das hostes portuguesas que participaram na batalha das Navas de Tolosa, que representou o ponto de viragem definitivo do sentido da Reconquista. Mesmo após a morte do mestre templário Gomes, na sequência de ferimentos recebidos nessa batalha, o rei continuou a depositar a maior confiança na milícia do Templo:
  • é sintomático o facto de ter sido confiado ao mestre templário, bem como ao prior do Hospital, a custódia de certos bens que deveriam ser entregues aos descendentes de Afonso II na sua maioridade.
No que respeita à implantação da Ordem do Hospital no nosso país, várias têm sido as datas apontadas É apenas de 1232 o primeiro documento que atesta de forma inequívoca a sua presença no reino, se bem que seja unânime a opinião de que esta deverá ter tido lugar em data bastante anterior. A maioria dos autores tem apontado os anos de 1126-1128 para essa instalação, ou seja, numa altura sensivelmente contemporânea da dos templários, e pouco depois da sua entrada no reino de Aragão, ocorrida em 1225. Recentemente, foi apontada a data de 1112, com base numa pública forma do século XIV, que regista a presença na diocese do Porto do mestre hospitalário Martinho servus pauperum Jherosolimitanorum. Esta data, contudo, se bem que estribada num documento autêntico, levanta algumas dúvidas relacionadas com a sua precocidade, já que, a ser verdadeira, os hospitalários teriam tido o seu primeiro estabelecimento na Península Ibérica, não em Aragão, tradicionalmente mais ligado ao mundo Mediterrâneo onde a milícia tinha a sua principal actividade, e ainda antes da bula Piae Postulatio de 1113, já referida a propósito da fundação e primórdios da Ordem. Se a data da chegada dos cavaleiros hospitalários permanece pois em dúvida, o certo é que durante o reinado de Afonso Henriques a sua presença atesta-se de uma forma determinante. Os documentos deixam entrever que numa primeira fase, e tal como acontecia em Jerusalém, os hospitalários se dedicaram essencialmente a funções assistenciais, e só a partir da década de 80 do século XII é que há provas seguras da sua participação em actividades militares como a conquista de Silves, em 1189. Em 1140, Afonso Henriques dá carta de couto ao estabelecimento hospitalário de Leça e, sete anos mais tarde, os cavaleiros recebem do mesmo rei, logo após a conquista de Santarém, a igreja de S. João de Alporão, que viria a ser o centro de uma das mais importantes comendas da Ordem em território português. Entretanto, tinham já recebido um hospital dedicado a doentes e peregrinos em Braga.
A primeira grande doação régia, de cariz militar, feita à Ordem do Hospital data apenas de 1194, altura em que a zona de Guidintesta lhes é dada por Sancho I, com a condição de aí construírem o castelo de Belver. Esta doação parece demonstrar que o rei pretendia, ou acreditava, que os hospitalários tinham então capacidade de intervenção militar e portanto de defesa do reino, tanto mais que se tratava de uma zona fronteiriça. E a fortaleza então construída terá respondido ao que lhe era solicitado, já que Belver vai ser um dos locais de depósito de parte do tesouro real em 1210.
As relações entre Sancho I e os hospitalários iam, no entanto, além das necessidades militares e de povoamento, já que é a eles que o rei confia o censo anual prometido por seu pai à Santa Sé e que foi entregue em 1198. Tal como acontecera com os templários, no período que antecedeu o reconhecimento de Portugal como reino independente, a escolha destes cavaleiros como intermediários entre Portugal e o papado não será alheia ao facto de se tratar de uma instituição internacional e ao prestígio granjeado pelos seus membros enquanto defensores dos peregrinos. A confiança do monarca encontra-se igualmente plasmada nos seus dois testamentos:
  • No primeiro, datado de 1189, o rei Sancho manda restituir aos cavaleiros, assim como aos templários, uma determinada soma de dinheiro que se encontrava em Santa Cruz e que lhes pertencia, o que terá talvez posto em causa a cordialidade as relações entre o monarca e a Ordem;
  • Em 1211, ao dispor definitivamente as suas últimas vontades, o monarca Sancho nomeia o Prior do Hospital como um dos testamenteiros régios, ao mesmo tempo que confia à Ordem uma avultada quantia em dinheiro destinada a ser distribuída pelos descendentes do monarca.
O primeiro documento que reflecte inequivocamente a existência de algum mal-estar entre a instituição hospitalária e a monarquia portuguesa data do início do reinado de Afonso II, e tem como motivo a posse da terra de Bouças e outra vila, que haviam sido doadas por D. Mafalda, filha de Sancho I, à Ordem. Esta terá recorrido à Santa Sé para fazer valer as suas pretensões, que nomeou os bispos de Astorga, Burgos e Segóvia como árbitros da questão. É possível que esta contenda esteja relacionada com a polémica que envolveu Afonso II e as suas irmãs». In Maria Cristina A. Cunha, Estudos sobre a Ordem de Avis, séculos XII-XV, Faculdade de Letras, Biblioteca Digital, Porto, 2009.

Cortesia da Faculdade de Letras do Porto/JDACT

domingo, 30 de dezembro de 2012

Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse’. Xosé Manuel Dasilva. «Soneto testamentário, por assim dizer, já que, perante a situação de morte iminente, se dirige à obra em conjunto, impondo-lhe um sentido último, e, para além deste sentido, a encarrega de uma mensagem»

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«De facto, esses dois sonetos ocupam a primeira e a segunda posição nas Rhythmas de 1595, privilégio de que vão continuar a gozar em quase todas as ulteriores edições camonianas. Cabe indicar como única excepção, quanto ao soneto Eu cantarei do Amor tão docemente, a edição da Lírica de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, onde figura com o número 38, decerto para adaptar o seu sentido à ideia do primeiro dos editores acerca de uma relação amorosa entre Camões e a Infanta Dona Maria. Fica à margem a edição Obra completa organizada por António Salgado Júnior, onde se utiliza o critério alfabético para a ordenação dos textos.
No soneto Eu cantarei do Amor tão docemente, o emissor lírico promete cantar com extrema doçura o Amor, para levar quantos ainda não experimentaram a sua força a senti-la. Há-de o fazer manifesto perante todos os que escutarem o seu canto, descrevendo a paixão em tons suaves. A voz poética anuncia a precisa exposição dos pequenos desapontamentos, dos lamentos proferidos com abandono, do tímido atrevimento e das mágoas da ausência, emoções habituais para quem ama.
Além disso, o emissor lírico propõe-se também cantar a amada, referindo poucos pormenores em particular do recatado desdém com que corresponde às manifestações do seu amor. Com toda a modéstia, todavia, reconhece que não há-de elevar o seu canto como gostaria, pois confessa faltarem-lhe sabedoria, génio e talento para louvar a sublime e maravilhosa dama. Não será demais apontar que do soneto Eu cantarei de amor tão docemente há uma paráfrase parcial, relativa sobretudo à primeira quadra, no poema Yo cantaré de amor tan dulcemente, do autor espanhol Gabriel Bocángel.
Outra composição camoniana que tem características de soneto-prólogo é Sospiros inflamados, que cantais. Também neste caso o poema é apresentado aos leitores como sensata advertência de quem é experiente. Trata-se de uma nova palinódia poemática em que o amante, na qualidade de autor implicado, como responsável pela escrita dos poemas, se arrepende dos antigos erros passionais, e pede que os textos que se seguem sejam entendidos na sua feição exemplar e instrutiva. Apesar disso, Storck achou que Sospiros inflamados, que cantais poderia ser considerado, mais do que prólogo, epílogo poético expressamente composto para fechar a colecção de poesias amorosas. Seria possível relacionar a opinião do erudito alemão com o seguinte juízo de Leal de Matos:
  • Soneto testamentário, por assim dizer, já que, perante a situação de morte iminente, se dirige à obra em conjunto, impondo-lhe um sentido último, e, para além deste sentido, a encarrega de uma mensagem.
Quanto às fontes de Em quanto quis Fortuna que tivesse, deve-se dizer, antes de mais, que Faria Sousa, ao comentar o soneto, expõe um quadro que contextualiza o subgénero soneto-prólogo, traçando a sua história com descomunal cultura literária:
  • Este soneto es la proposición de estas Rimas; y la más elevada que yo hallo en todos los autores de semejantes poemas. Parece que con decir esto me obligaba a copiar aquí las de los mejores. Excúsolo, por no despender tiempo en cosas que no sirven a la explicación a que me expongo; y más cuando estoy viendo que esto sólo me hará ser bastantemente dilatado, aunque no he de decir más de lo preciso; y también porque los eruditos lo pueden examinar, si no quisieren dar crédito a este nuestro juicio. Petrarca es el primero que propuso en forma sus varias Rimas; y después le imitaron el Bembo, el Casa, y otros quedándole inferiores. Nuestro magisterio Garcilaso no ordenó las suyas para estamparlas, y si llegara a hacerlo no fuera sino con todo acierto. Quien las ha publicado eligió de sus sonetos el que realmente era más propio para el principio.
Embora não seja conhecido nenhum modelo preciso que Camões tenha imitado, existem várias composições, entretanto, que apresentam analogias indubitáveis com Em quanto quis Fortuna que tivesse. Como Faria Sousa refere, a fonte do subgénero soneto-pró-logo encontra-se em Petrarca, especificamente no soneto Voi chascoltate in rime sparse il suono, que ocupa o primeiro lugar no Canzoniere como proémio poético:

Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono
di quei sospiri ond’io nudriva l core,
in sul mio primo giovenile errore,
quand’era in parte altr’uom da quel ch’i’ sono,

del vario stile in ch’io piango et ragiono
fra le vane speranze, e l van dolore,
ove sia chi per prova intenda amore
spero trovar pietà, non che perdono.

Ma ben veggio or si come al popol tutto
favola fui gran tempo, onde sovente
di me medesimo meco mi vergogno.

Et del mio vaneggiar vergogna è l frutto,
e l pentersi, e l conoscer chiaramente
che quanto piace al mondo è breve sogno.

A coincidência mais importante entre Em quanto quis Fortuna que tivesse e o poema petrarquista é o uso do vocativo pronominal vós para apostrofar os leitores, numa invocação que lhes é dirigida como destinatários da composição. Além disso, é notória a similitude decorrente de uma focagem temporal que permite ao emissor lírico contemplar os dias do passado a partir do arrependimento do presente, de tal modo que os seus versos se fazem exemplo dissuasor para outros amantes». In Xosé Manuel Dasilva. Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse, revista Limite nº 5, Universidade de Vigo 2011.

Cortesia de Limite/JDACT

Os Venturosos. Leituras. Alexandre Honrado. «Andam-se às razões frias pela rama, um vilancete brando, ou seja, um chiste, letras às invenções, motes às damas; uma pergunta escura, esparsa triste, tudo bom, quem o nega...»

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«Melhores são os cozinheiros em audições que os confessores; os cozinheiros são artistas da paciência em lumes brandos ou fervuras... Da amálgama dos condimentos operam sábias alquimias... O cozinheiro-mor ouviu-o. Longa e atentamente o ouviu, em silêncio respeitoso mas pleno de critérios. - Meu senhor - disse por fim, em pausa aproveitada. - Vim recentemente das Índias, terras bravas onde o Mundo é do avesso e em nada se parece com terras cristãs que conhecemos.
  • Os homens ali são de outras e muitas cores e têm outros cheiros, outros feitios de espírito e de corpo, e outras crenças. Até os animais, por lá, são inspirações de demónio estrangeiro que ora os agigantou ora os afeou e afeleou de tal sorte que pormenores monstruosos em alguma de todas as lendas descritas se lhes podem semelhar... As Índias são terras de feitiços mas não desprovidas de ensinamentos. De lá trouxe, permita-me confessá-lo e assim sendo incorrer na imodéstia imprópria da minha condição, algumas sabedorias. Olhai...
O cozinheiro levantou o saiote que lhe cobria as pernas e tirou, debaixo deste, um saquinho de pano. E disse com mistérios na voz, nos modos: - Nunca experimentei estes pós. Garantiram-me a sua força, a sua eficácia. Que fazem do ser mais fraco um vencedor, mo disseram... Tomai-os.
Ataíde aquiesceu, medroso como sempre, a custo, tremendo-lhe as mãos, os pensamentos, os desejos... O cozinheiro estimulou-o e, como se ele hesitasse, misturaram juntos os pós numa pouca de água, água turva que se foi muito mais turvando na mistura até se tornar um prodígio opaco. Ataíde tragou a mistela de um trago. Esperou… Como se nada sentisse findo algum tempo pediu esclarecimento. - A seu tempo, meu senhor, a seu tempo.
Ataíde desistiu da espera, conformado, mais uma vez a sorte abandonara-o, e desiludido recolheu-se, finalmente, aos seus aposentos. Durante muitas horas nada sentiu, pois nada visivelmente se passou. Os caminhos do sangue, todavia, fervilhavam numa transformação de efeitos imprevisíveis…
Já a noute era bem cerrada, e essa noute era, por sinal, de lua nova, negrume absoluto, a cabeça começou a rodar-lhe, o corpo a inchar, o sangue novo a revelar-se-lhe... Ideias que nunca tivera e vontades que nunca possuíra treparam-lhe pelos membros. A pele era agora um cortiço e Ataíde agastava-se em mil mordeduras. Agitou-se inteiro. Em certos sítios muito próprios da sua pele sempre dócil ardia como labareda, eram dentes de diabos que se cravavam na carne. Desvairou. Abriu a porta num rompante e chamou, esganiçado, o guarda-sentinela que costumava fazer vigílias no corredor. O guarda acudiu e Ataíde trouxe-o consigo, de arrasto... […]

Era a Páscoa e El-Rei resolveu festa. El-Rei decidira: uma festa grandiosa que até as varizes se me varrem da lembrança! - Que corra o vinho, que se assem carnes, de javali, de veado, de cabrito, de faisão. Que se faça a festa, com poetas de recital e músicos tangedores. Porquê? Porque talvez assim as varizes se entretenham e a chateação diminua...
Frei Nicolau emborrachou-se como há muito não fazia. Vomitava e bebia, bebia e vomitava. Pelo meio incitava a que se tocasse e dançasse. El-Rei encomendou poetas. E a um pediu que recitasse. Não pediu a um qualquer. Pediu a um de grande porte, que obtivera o grau de doutor em leis com tal acerto que passara da carteira de aluno aplicado para a cátedra de professor. Além das leis, era um desses que conhecia bem o grego e o latim, e que vivia na Corte e que gostava de momos e serões, do primor dos motes e dos ditos delicados, então muito em voga. Era o Sá, poeta que sentira desde muito cedo o chamamento das musas, começando a compor cantigas' esparsas e vilancetes.
 - Irra, Sá, recita-me um poema! - Comandou El--Rei de taça ao alto para que um serviçal lha enchesse pela décima vez nessa noute. E Sá recitou um vilancete:

Acustumei me a meus males:
e eu assi acustumado a eles
andão por me apartar d'eles.
Não ha a fortuna vergonha
do mal que assi fazia;
ha medo que ua pezonha
de que eu ja agora bebia.
Quando os meus males sentia,
quando me queixava. d'eles,
deixava me jazer n'eles.

Agora que o custume
(que al não) mos tinha abrandado,
virão me andar sem queixume,
provão me no meu cuidado.
Que bem é de acustumado
os males calar com eles!
E assim me matem por eles!

O rei ficou danado. - Pois quereis que vos açoite? Que merdança é essa de males, Peçonha, queixume? Sá, sem se abalar, ripostou:

Andam-se às razões frias pela rama,
um vilancete brando, ou seja, um chiste,
letras às invenções, motes às damas;
uma pergunta escura, esparsa triste,
tudo bom, quem o nega...

El-Rei, exasperado, ergue-se e cambaleou em direcção ao poeta. - Vou-te desfazer esse traseiro ao pontapé, irra! Eu te dou a esparsa triste... Sá safou-se. Saiu da sala acabrunhado. Sentou-se cá fora a um canto e, muito bucólico e lírico, soltando azeda lágrima, disse entre dentes:

Dos motes o primor e altos sentidos,
os ditos delicados cortesãos,
que é deles? Quem lhes dá somente ouvidos?

In Alexandre Honrado, Os Venturosos, Círculo de Leitores, Braga, 2000, ISBN 972-42-2392-2.

continua
Cortesia de C. de Leitores/JDACT

Manifesto [adaptado] anti-… e por extenso. Poeta d'Orpheu Futurista e Tudo. José de Almada-Negreiros. «Trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao “Futurismo”»


jdact e cortesia de wikipedia
  
NOTA: Brincando com as palavras. Onde está … deveria ler-se Dantas

Manifesto Anti-Dantas
Este texto virulento do jovem Almada, que contava 23 anos, terá sido escrito entre Abril e Setembro de 1916, sendo, portanto, anterior à conferência de 1917, início oficial do movimento futurista em Portugal. Saiu este folheto de 8 páginas impresso em papel de embrulho, ao preço de 100 reis, utilizando aqui e além, para sublinhar a onomatopeia - PIM!-, uns ícones representando uma mão no gesto de apontar. Segundo se diz, terá esgotado nos primeiros dias, por obra do açambarcamento do próprio visado. Apesar disso, ou graças a isso, o escândalo rapidamente se propalou e a polémica causada teve uma grande intensidade. É que, no fundo, não é só a pessoa de Dantas que é atacada, mas toda uma geração de literatos, actores, escritores, jornalistas, etc, que ele personificava:
  • Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi.
Através da ironia e do sarcasmo, utilizando uma linguagem iconoclasta e insultuosa, abusando de exclamações, repetições e enumerações, Almada zurze o academismo instalado e os valores tradicionais que pretendia abalar. Em suma, trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao Futurismo e a si próprio.

Basta PUM Basta!
Uma geração, que consente deixar-se representar por um … é uma geração que nunca o foi! É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma rêsma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração!
Morra o … , morra! PIM!
Uma geração com um … a cavalo é um burro impotente! Uma geração com um … à proa é uma canôa uni seco! O … é um cigano! O … é meio cigano! O … saberá grammática, saberá syntaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias p'ra cardeais saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ellle faz! O … pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquezas! O … é um habilidoso! O … veste-se mal! O … usa ceroulas de malha! O … especúla e inócula os concubinos! O … é … ! O … é júlio!
Morra o … , morra! PIM!
O … fez uma sorôr marianna que tanto o podia ser como a sorôr ignez ou a ignez de castro, ou a leonor telles, ou o mestre d'aviz, ou a dona constança, ou a nau cathrineta, ou a maria rapaz! E o … teve cláque! E o … teve palmas! E o … agradeceu! O … é um ciganão! Não é preciso ir p'ró rocio p'ra se ser um pantomineiro, basta ser-se pantomineiro! Não é preciso disfarçar-se p'ra se ser salteador, basta escrever como … ! Basta não ter escrúpulos nem moraes, nem artísticos, nem humanos! Basta andar co'as modas, co'as políticas e co'as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado e usar côco e olhos meigos! Basta ser judas! Basta ser … !
Morra o … , morra! PIM!
O … nasceu para provar que, nem todos os que escrevem sabem escrever! O … é um automato que deita pr'a fora o que a gente já sabe que vae sahir... mas é preciso deitar dinheiro! O … é um soneto d'elle-próprio! O … em génio nunca chega a pólvora secca e em talento é pim-pam-pum! O … nú é horroroso! O … cheira mal da boca!
Morra o … , morra! PIM!


O … é o escarneo da consciência! Se o … é portuguez eu quero ser hespanhol! O … é a vergonha da intellectualidade portugueza! o … é a meta da decadência mental! E ainda há quem não córe quando diz admirar o … ! E ainda há quem lhe estenda a mão! E quem lhe lave a roupa! E quem tenha dó do … ! E ainda há quem duvide de que o … não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é intelligente nem decente, nem zero! Vocês não sabem quem é a soror marianna do … ? E vou-lhes contar:
  • a princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quaes nada temos que vêr, pensei tratar-se de sorôr marianna alcoforado a pseudo auctora d'aquellas cartas francezas que dois illustres senhores d'esta terra não descançaram enquanto não estragaram p'ra portuguez, quando subiu o panno também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de beja disse que tinha estado à espera do nascer do sol!;
  • a marianna vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só. Traz também o chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na brazileira do chiado. Pouco depois o bispo de beja é que me disse que elle trazia calções vermelhos. A marianna e o chamilly estão sòzinhos em scena, e às escuras dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. depois o chamilly, completamente satisfeito despede-se e salta p'la janella com grande magua da freira lacrimosa. E anda hoje os turistes teem occasião de observar as grades arrombadas da janella do quinto andar do convento da conceição de beja na rua do touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em paris e dentista em lisboa;
  • a marianna que é histérica começa de chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excellente pau de cabeleira sorôr Ignez;
  • veem descendo p'la dita estreitíssima escala (sic), varias mariannas todas eguaes e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengalla e ainda (sic) toda curvada p'rá frente o que quer dizer que é abadessa;
  • e seria até uma excelente personificação das bruxas de goya se quando fallasse não tivesse aquella voz tão fresca e maviosa da tia felicidade da vizinha do lado, e reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e immensa falta de corda...
Quem está ahi?... E de candeias apagadas? Foi o vento, dizem as pobres innocentes varadas de terror... E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada p'rá frente manda tocar a sineta que é um dó d'alma o ouvi-la assim tão debilitada, vão todas p'ró côro, mas eis que, de repente batem no portão e sem se annunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra p'lo salão um bispo de beja que quando era novo fez brégeirices co'a menina do chocolate. Agora completamente emendado revela à abbadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavallos a saltar p'la janella. A abadessa diz que effectivamente já há tempos que vinha dando p'la falta de gallinhas e tão innocentinha, coitada, que n'aquelles oitenta annos ainda não teve tempo p'ra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres.
Depois de sérios embaraços do bispo é que ella deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco co'as candeias apagadas. n'esta altura esta peça policial toma um pedaço d'interesse porque o bispo ora parece um polícia de investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d'investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o público já está farto de saber - que a marianna dormiu co'o noel. o peor é que a marianna foi à serra co'as indiscreções do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando p'ra tudo aquillo. esteve mesmo muito perto de se estrelar com um par de murros na corôa do bispo no que (se) mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta a tocar uma marcha de clarins e marianna sentindo nas patas dos cavallos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janella a gritar desalmadamente p'lo seu noel. Grita, assobia e redopia e pia e rasga-se e magóa-se e cae de costas com um accidente, do que já previamente tinha avisado o público e o panno também cae e o espectador também cae da paciência abaixo e desata n'uma destas pateadas tão enormes e tão monumentaes que todos os jornaes de lisboa no dia seguinte foram unânimes n'aquelle êxito teatral do dantas. A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquillo não era a sorôr alcoforado mas sim uma merdarianna aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuaes.
Continue o senhor … a escrever assim que há-de ganhar muito co'o alcufurado e há-de ver, que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do porto, e uma exposição das maquetes p'ró seu monumento erecto por subscriçao nacional do século a favor dos feridos da guerra, e a praça de camões mudada em praça do dr. julio dantas, e com festas da cidade p'los anniversários, e sabonetes em conta «julio dantas» e pastas … p'rós dentes, e graxa … p'rás botas, e niveina … , e comprimidos … e autoclismos … e … , … e limonadas … - magnesia.
E fique sabendo o … que se um dia houver justiça em portugal todo o mundo saberá que o autor dos luzíadas é o … que n'um rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo camões. E fique sabendo o … que se todos fôssem como eu, haveria taes munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar. Mas juygaes que n'isto se resume a litteratura portugueza? Não! Mil vezes não! Temos, além d'isto o chianca que já fez rimas p'ra alubarrota que deixou de ser a derrota dos castelhanos p'ra ser a derrota do chianca. E as pinoquices de vasco mendonça alves passadas no tempo da avôsinha! E as infelicidades de ramada curto! E o talento insólito de urbano rodrigues! E as gaitadas do brun! E as traducções só p'ra homem o illustríssimo excelentíssimo senhor mello barreto! E o frei matta nunes môxo! e a ignez syphilitica do faustino! E as imbecilidades do sousa costa! E mais pedantices do … ! E alberto sousa, o … do desenho! e os jornalistas do seculo e da capital e do noticias e do paiz e do dia e da nação e da repubuca e da lucta e de todos, todos os jornaes! E os actores de todos os theatros! E todos os pintores das bellas artes e todos os artistas de portugal que eu não gosto. E os da aguia do porto e os palermas de coimbra! E a estupidez do oldemiro cesar e o doutor josé de figueiredo amante do museu e ah oh os sousa pinto hu hi e os burros de cacilhas e os menús do alfredo guisado! e (o) rachitico albino forjaz sampaio, critico da lucta a quem o fialho com immensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são politicos e artistas! E as exposições annuaes das bellas arte(s)! E todas as maquetas do marquez de pombal! E as de camões em paris! E os vaz, os estrella, os lacerda, os lucena, os rosa, os costa, os almeida, os camacho, os cunha, os carneiro, os barros, os silva, os gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os scelerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os lopes, os peixotos, os motta, os godinho, os teixeira, os diabo que os leve, os constantino, os grave, os mantua, os bahia, os mendonça, os brazão, os mattos, os alves, os albuquerque, os sousas e todos os … que houver por ahi!!!!!!


E as convicções urgentes do homem christo pae e as convicções catitas do homem christo filho! E os concertos do blanch! E as estatuas ao leme, ao eça e ao despertar e a tudo! e tudo o que seja arte em portugal! E tudo! Tudo por causa do … !
Morra o … , morra! pim!
Portugal que com todos estes senhores, conseguiu a classificação do paiz mais atrazado da europa e de todo omundo! o paiz mais selvagem de todas as áfricas! o exilio dos degradados e dos indiferentes! a africa reclusa dos europeus! o entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro ha-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará commigo, a meu lado, a necessidade que portugal tem de ser qualquer coisa de asseiado!
Morra o … , morra! pim!
José Almada-Negreiros, poeta d'orpheu, futurista e Tudo
Abril ou Setembro de 1916


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O Pensamento Filosófico de Antero de Quental. Leonardo Coimbra. «Ao protesto das ciências junta-se o protesto da consciência moral, em sérios riscos da asfixia nesse Universo, onde a liberdade moral não encontraria espaço para insinuar o seu mérito. É a psicologia escocesa, é o espiritualismo à Cousin»

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As Doutrinas Filosóficas de Antero
Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX
«Mas o século XVIII não deu somente esta fecunda noção de desenvolvimento, foi também o grande século em que pela voz de Kant o pensamento se interrogou sobre a legitimidade e valor de seus direitos. Força? Leis? Mas tudo isso são conhecimentos. O que é, pois, o conhecimento?
Kant responde:
  • quer ele o saiba ou não, que o espírito é o verdadeiro noumenon, a ser tipo, medida de todos os seres, revelação da sua mais íntima natureza.
O Universo, no kantismo, reflui todo para a consciência e some-se nela, mas para de lá sair transfigurado, análogo ao espírito ou idêntico com o espírito. O subjectivismo de Kant ou é nada ou o reconhecimento da identidade do ser e do saber. Assim, a verdadeira significação histórica do kantismo é aquilo que legitimamente saiu dele, o realismo transcendental de Schelling e Hegel.
A nova filosofia fundada sobre a identidade do ser e do saber leva as ideias fundamentais do espírito moderno, a ideias de força, de imanência e de desenvolvimento até ao máximo grau de condensação. Com Schelling e Hegel a filosofia da natureza compenetra-se dos seus verdadeiros princípios metafísicos: o mecanismo dissolve-se no dinamismo, cujo último tipo é o espírito.
Mas em Hegel morre o último sistema dogmático. O pensamento moderno é inimigo das monstruosas deduções abstractas, quer, em linha sinuosa, Contactar o complexo das realidades. Quer que a sua filosofia tenha alguma coisa de espontâneo e orgânico como a mesma natureza que a inspira. Ao apriorismo da filosofia transcendental opunham as ciências os seus métodos de paciente observação e indução cautelosa. O dogmatismo filosófico era efectivamente arrogância excessiva era pior, era um profundo erro. As relações entre a ciência e a filosofia são de irmandade e nunca de servidão.
A filosofia limita-se aos primeiros princípios das coisas e à análise das ideias fundamentais: o grande e variado mundo dos factos pertence inteiro à observação, à experiência e à indução. A hipótese vinda da especulação não se impõe à ciência, alumia.
A hipótese é pois simplesmente o ponto de contacto e de intersecção da filosofia com a ciência. Pode a filosofia apropriar para matéria de suas especulações as ideias fundamentais das ciências; umas o desenvolvimento real dessas ideias no mundo dos fenómenos só a ciência o pode seguir e determinar metodicamente, porque só ela tem instrumentos e autoridade para isso. Depois o momento histórico era o menos propício a dogmatismos e apriorismos.


As ciências entravam, com efeito, numa florescência magnífica; enquanto as ciências físico-químicas iam no entusiasmo duma grande síntese monista, as outras ciências, do homem e da sociedade à terra e ao céu, embebiam-se na fecunda ideia de evolução, que vai penetrar as ciências biológicas e renovar-lhes completamente o espírito e os métodos. A própria história, que a Razão hegeliana desenvolvia como momentos dialécticos da sua evolução, protesta contra o pobre esquematismo de tais deduções e mostra o irredutível do seu contingencialismo. Ao protesto das ciências junta-se o protesto da consciência moral, em sérios riscos da asfixia nesse Universo, onde a liberdade moral não encontraria espaço para insinuar o seu mérito. É a psicologia escocesa, é o espiritualismo à Cousin.
De nímio ou nulo valor científico valem, no entanto, como protestos do senso comum e da consciência moral contra os exageros dum dogmatismo impassível. A verdade é que no fundo desta questão de filósofos, estava uma questão humana, da larga e fundamental importância humana». In Leonardo Coimbra, O Pensamento Filosófico de Antero de Quental, Guimarães Editores, Lisboa, 1991, ISBN 972-665-372-X.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT