domingo, 30 de dezembro de 2012

Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse’. Xosé Manuel Dasilva. «Soneto testamentário, por assim dizer, já que, perante a situação de morte iminente, se dirige à obra em conjunto, impondo-lhe um sentido último, e, para além deste sentido, a encarrega de uma mensagem»

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«De facto, esses dois sonetos ocupam a primeira e a segunda posição nas Rhythmas de 1595, privilégio de que vão continuar a gozar em quase todas as ulteriores edições camonianas. Cabe indicar como única excepção, quanto ao soneto Eu cantarei do Amor tão docemente, a edição da Lírica de José Maria Rodrigues e Afonso Lopes Vieira, onde figura com o número 38, decerto para adaptar o seu sentido à ideia do primeiro dos editores acerca de uma relação amorosa entre Camões e a Infanta Dona Maria. Fica à margem a edição Obra completa organizada por António Salgado Júnior, onde se utiliza o critério alfabético para a ordenação dos textos.
No soneto Eu cantarei do Amor tão docemente, o emissor lírico promete cantar com extrema doçura o Amor, para levar quantos ainda não experimentaram a sua força a senti-la. Há-de o fazer manifesto perante todos os que escutarem o seu canto, descrevendo a paixão em tons suaves. A voz poética anuncia a precisa exposição dos pequenos desapontamentos, dos lamentos proferidos com abandono, do tímido atrevimento e das mágoas da ausência, emoções habituais para quem ama.
Além disso, o emissor lírico propõe-se também cantar a amada, referindo poucos pormenores em particular do recatado desdém com que corresponde às manifestações do seu amor. Com toda a modéstia, todavia, reconhece que não há-de elevar o seu canto como gostaria, pois confessa faltarem-lhe sabedoria, génio e talento para louvar a sublime e maravilhosa dama. Não será demais apontar que do soneto Eu cantarei de amor tão docemente há uma paráfrase parcial, relativa sobretudo à primeira quadra, no poema Yo cantaré de amor tan dulcemente, do autor espanhol Gabriel Bocángel.
Outra composição camoniana que tem características de soneto-prólogo é Sospiros inflamados, que cantais. Também neste caso o poema é apresentado aos leitores como sensata advertência de quem é experiente. Trata-se de uma nova palinódia poemática em que o amante, na qualidade de autor implicado, como responsável pela escrita dos poemas, se arrepende dos antigos erros passionais, e pede que os textos que se seguem sejam entendidos na sua feição exemplar e instrutiva. Apesar disso, Storck achou que Sospiros inflamados, que cantais poderia ser considerado, mais do que prólogo, epílogo poético expressamente composto para fechar a colecção de poesias amorosas. Seria possível relacionar a opinião do erudito alemão com o seguinte juízo de Leal de Matos:
  • Soneto testamentário, por assim dizer, já que, perante a situação de morte iminente, se dirige à obra em conjunto, impondo-lhe um sentido último, e, para além deste sentido, a encarrega de uma mensagem.
Quanto às fontes de Em quanto quis Fortuna que tivesse, deve-se dizer, antes de mais, que Faria Sousa, ao comentar o soneto, expõe um quadro que contextualiza o subgénero soneto-prólogo, traçando a sua história com descomunal cultura literária:
  • Este soneto es la proposición de estas Rimas; y la más elevada que yo hallo en todos los autores de semejantes poemas. Parece que con decir esto me obligaba a copiar aquí las de los mejores. Excúsolo, por no despender tiempo en cosas que no sirven a la explicación a que me expongo; y más cuando estoy viendo que esto sólo me hará ser bastantemente dilatado, aunque no he de decir más de lo preciso; y también porque los eruditos lo pueden examinar, si no quisieren dar crédito a este nuestro juicio. Petrarca es el primero que propuso en forma sus varias Rimas; y después le imitaron el Bembo, el Casa, y otros quedándole inferiores. Nuestro magisterio Garcilaso no ordenó las suyas para estamparlas, y si llegara a hacerlo no fuera sino con todo acierto. Quien las ha publicado eligió de sus sonetos el que realmente era más propio para el principio.
Embora não seja conhecido nenhum modelo preciso que Camões tenha imitado, existem várias composições, entretanto, que apresentam analogias indubitáveis com Em quanto quis Fortuna que tivesse. Como Faria Sousa refere, a fonte do subgénero soneto-pró-logo encontra-se em Petrarca, especificamente no soneto Voi chascoltate in rime sparse il suono, que ocupa o primeiro lugar no Canzoniere como proémio poético:

Voi ch’ascoltate in rime sparse il suono
di quei sospiri ond’io nudriva l core,
in sul mio primo giovenile errore,
quand’era in parte altr’uom da quel ch’i’ sono,

del vario stile in ch’io piango et ragiono
fra le vane speranze, e l van dolore,
ove sia chi per prova intenda amore
spero trovar pietà, non che perdono.

Ma ben veggio or si come al popol tutto
favola fui gran tempo, onde sovente
di me medesimo meco mi vergogno.

Et del mio vaneggiar vergogna è l frutto,
e l pentersi, e l conoscer chiaramente
che quanto piace al mondo è breve sogno.

A coincidência mais importante entre Em quanto quis Fortuna que tivesse e o poema petrarquista é o uso do vocativo pronominal vós para apostrofar os leitores, numa invocação que lhes é dirigida como destinatários da composição. Além disso, é notória a similitude decorrente de uma focagem temporal que permite ao emissor lírico contemplar os dias do passado a partir do arrependimento do presente, de tal modo que os seus versos se fazem exemplo dissuasor para outros amantes». In Xosé Manuel Dasilva. Comentário a um soneto (autêntico) de Camões, ‘Em quanto quis Fortuna que tivesse, revista Limite nº 5, Universidade de Vigo 2011.

Cortesia de Limite/JDACT