domingo, 16 de dezembro de 2012

Naomi (Chijin No Ai, 1924). Junichirö Tanizaki. Leituras. «Pela minha parte, eu era uma ama-seca, um tio amável e simpático; nunca me comportei de modo diferente, nem esperei mais nada dela senão aquele tipo de relação. Quando os recordo agora, aqueles dias fugazes, como de sonho, parecem um conto de fadas…»


jdact e cortesia de wikipedia

Mais tarde, se gostasse do que visse, podia casar-me com ela. Isto seria o suficiente; eu não estava interessado em casar com a filha de um homem rico, nem com uma mulher do tipo fina e educada. Além disso, fazer amizade com uma rapariguinha e observar o seu desenvolvimento dia-a-dia, enquanto levávamos uma vida alegre e divertida, parecia-me que teria um atractivo especial, muito diferente do que seria montar casa conforme as regras. Resumindo, eu e Naomi brincaríamos às casinhas, como crianças. Seria uma vida simples e descontraída, e não essa existência enfadonha associada à manutenção de uma casa. Era esse o meu desejo. Uma casa conforme as regras, no Japão moderno, exige que:
  • cada armário, braseira ou al mofada esteja no lugar que lhe é destinado;
  • as tarefas do marido, da mulher e da criada são fastidiosamente distintas;
  • é preciso satisfazer vizinhos e familiares difíceis de contentar.
Nada disso é agradável nem benéfico para um jovem empregado de escritório, pois requer muito dinheiro e torna complicado e rígido aquilo que devia ser simples. Tendo em conta esses aspectos, considerei o meu plano uma espécie de inspiração. Falei do meu plano a Naomi pela primeira vez quando a conhecia havia cerca de dois meses. Durante esse tempo tinha ido ao Café Diamante sempre que estava desocupado e excogitara todas as oportunidades que pudera para falar com ela. Naomi gostava muito de ver filmes, e nos dias da folga ia comigo a um cinema no parque. Depois, entrávamos em qualquer lado para petiscar comida ocidental ou talharim. Mesmo nessas ocasiões, era raro ela dizer uma palavra; normalmente, tinha um ar tão carrancudo que eu não conseguia perceber se estava contente ou aborrecida. Porém, nunca disse que não, todas as vezes que a convidei. Está bem, claro, respondia docilmente e seguia-me fosse para onde fosse.
Não sabia que espécie de pessoa ela julgava que eu era, nem por que vinha comigo, mas supunha que ela era ainda uma criança que olhava os homens sem desconfiança, e que os seus sentimentos eram simples e inocentes. A minha convicção era que ela vinha comigo porque eu a levava aos espectáculos de que ela gostava e a convidava para jantar. Pela minha parte, eu era uma ama-seca, um tio amável e simpático; nunca me comportei de modo diferente, nem esperei mais nada dela senão aquele tipo de relação. Quando os recordo agora, aqueles dias fugazes, como de sonho, parecem um conto de fadas, e não posso deixar de desejar que pudéssemos ser de novo o par ingénuo que fomos em tempos.
Consegues ver, Naomi? Quando não havia lugares para nos sentarmos, ficávamos em pé ao fundo da sala de cinema. Não consigo ver nada, respondia ela, esticando-se para se pôr em bicos de pés e tentando ver por entre as cabeças das pessoas que estavam na frente. Assim, não consegues ver. Sobe para este corrimão e segura-te ao meu ombro. Erguia-a e sentava-a num corrimão alto. Balançando as pernas e com uma mão no meu ombro, parecia satisfeita enquanto olhava atentamente para o filme.
Quando eu perguntava: Estás-te a divertir? Ela dizia apenas: Sim. Nunca batia palmas nem saltava de alegria; mas eu percebia quanto ela gostava dos filmes pela expressão do seu rosto enquanto olhava em silêncio, com os olhos inteligentes arregalados como os de um cão alerta, à escuta de um som distante.
Tens fome, Naomi? Por vezes, dizia: Não, não quero nada. Mas a maior parte das vezes, quando tinha fome, dizia: Sim, sem a menor reserva. Então, quando eu perguntava, ela dizia-me se queria comida ocidental ou talharim». In Junichirö Tanizaki, Naomi (Chijin No Ai, 1924), Relógio D’Água, 2007, Lisboa, ISBN 978-972-708-943-7.

Cortesia de Relógio D’Água/JDACT