quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Coimbra Doutora. Geerall Studo. Hippolyto Raposo. «Dom Dinis recebera o reino tranquillo e para o tornar prospero, não faltava ao neto de Affonso, o Sábio, fundador da Universidade de Salamanca, a necessária cultura de espirito. A nacionalidade ia tomando consciência de si, trovadores e jograes diffundiam o gosto pelas letras…»

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De acordo com o original

“Fez primeiro em Coimbra exercitarfe
O valeroso officio de Minerua,
E de Helicona as Musas fez paffarfe
A pifar do Mondego a fértil herua:
Quanto pode de Athenas defejarfe
Tudo o soberbo Apolo aqui referua:
Aqui as capellas da tecidas d'ouro,
Do baccaro, & do fempre verde louro”.
In Camões, - Lusíadas.

Geerall Studo
O Estudo Geral que Dom Dinis fundara em Lisboa, a instancias dalguns abbades e priores e á custa das suas rendas, tendia a dar expressão definitiva á nacionalidade portuguesa. Consagrava a autonomia mental quando a politica já estava firmemente assegurada e garantia maior consistência aos direitos reaes que o poder ecclesiastico vinha disputando com ardor e violência.
Cansado de luctas, aquietara-se o castelhano e na linha da fronteira que a espada affonsina limitara pelo oriente, erguiam-se castellos e atalaias vigiando o horizonte para terras de Espanha. Deante dos bandos conquistadores inimigos do Propheta, ia a moirama levantando as tendas, a oscillação constante dos dominios do sul dava ao reino os sobresaltos dum acampamento até ao termo da posse do Al-Gharb que abria o mar ao destino das navegações.
De longe trazia Coimbra a fama das escolas cathedralicias nascidas, segundo parece, da acção convergente do Conde Dom Sisnando e do Bispo Dom Paterno, logo após a reconquista christã da cidade, em meados do século XI, no tempo de Fernando Magno. No principio da monarchia, por extensos caminhos, iam ao centro da Europa estudantes portugueses procurar a cultura, pensionados pelos morabitinos de el-rei Dom Sancho, e por lá foram illustres muitos delles que a partir do século XIII viviam em Bolonha, e não sabemos agora se o enthusiasmo pela sciencia arrastou alguns á rua du Fouarre, em Paris, a ouvir deitados em molhos de palha, os mestres ensinando das janellas baixas.
O certo é que Portugal offerecia para o esplendor da primeira renascença uma contribuição gloriosa.
Fernando de Bulhões, nobre e rico, partia do convento de Santo António dos Olivaes para a Itália, embrulhado no burel franciscano, em busca da perfeição christã, professando depois theologia mystica por Montpellier, Pádua e Tolosa e obrando prodígios, como os velhos theurgos syrios…
Na memoria do povo revive ainda, já pallida de seis séculos, a figura confusa de demónio e santo, sábio e bruxo, de frei Gil de Santarém que foi, quando moço, discípulo em medecina de Mendo Diaz, depois do seu regresso de Paris, reinando Sancho I. Gil Rodriguez vivia com seu pae que era do conselho de el-rei, seu mordomo e alcaide-mór da cidade de Coimbra, sede da corte e onde já havia mestres das boas artes e sciencias. Rico de benefícios ecclesiasticos de que o favor real o cumulara, veiu-lhe a ambição de completar os estudos e foi caminho de Paris ouvir os sábios.
Próximo de Toledo, o demónio vem propôr-lhe um pacto e offerece-lhe conduzi-lo ás covas para depois de bem instruído na arte magica, curar todas as doenças e o moço acceita alvoroçado a seductora promessa. Abjurava da fé de Christo em que nascera e fora ordenado de presbytero, por um documento escrito com sangue do próprio braço entregava a alma ao demónio e quando chegou a Paris, logo a universidade o graduou, que nunca ali fora visto tam agudo ingenho.
Certa noite em que estudava com fervor, appareceu-lhe um cavalleiro armado, aconselhando-o a mudar de vida e, após sucessivas visões, resolve abandonar a sciencia profana e tomar o habito de S. Domingos em Palência (Espanha), aquelle negativista atheu da escola de Paris. No mosteiro aonde fora procurar a paz, perseguiam-no ainda mais as tentações de que só viria liberta-lo a oração pelo auxilio da Mãe dos Peccadores, a cujos pés veiu cair um dia o pergaminho ensanguentado do juramento toledano…
Agora voltava o frei a Paris, mas pobre e humilde, sem o séquito lustroso doutróra, o orgulho feito piedade e amor da sciencia divina de que por más artes de Lúcifer andou arredado e quasi a cair em eterna perdição. Dante cantou o philosopho Pedro Hispano como um dos maiores doutores do tempo, auctor das Summas aristotélicas que iluminaram a metaphysica medieval, servindo de canon para o estudo das artes em quasi todas as universidades europeias até ao século XVI e creando tal prestigio ao nome do nosso compatriota que o collegio dos cardeaes o elegeu papa com o nome de João XXI.
Do período prèuniversitario português vem ainda a tradição de Dom Pedro Alfarde, cónego regular, doutor parisiense e Dom frei Álvaro Paes, discipulo illustre do Doctor Subtilis (Joannes Duns Scotus), adversário de Santo Thomás em notáveis polémicas theológicas que determinaram a perpetua rivalidade entre franciscanos e dominicanos.


Dom Dinis recebera o reino tranquillo e para o tornar prospero, não faltava ao neto de Affonso, o Sábio, fundador da Universidade de Salamanca, a necessária cultura de espirito. A nacionalidade ia tomando consciência de si, trovadores e jograes diffundiam o gosto pelas letras, despertando a rudeza do povo e dos nobres para quem já começavam a vir pergaminhos de Paris e Roma. A lingua, até ali rude como os costumes, saía rediviva dentre a confusão dialectal, determinada pela dissolução do latim, cuja rigidez fora sempre temperada ao calor do génio peninsular». In Hippolyto Raposo, Coimbra Doutora, Geerall Studo, Typographia de F. França Amado, anno de MCMX, em Coimbra.

Cortesia de França Amado/JDACT