sábado, 29 de dezembro de 2012

Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus. António B. Coelho. «As invasões almorávidas e almóadas trouxeram novo alento aos clãs em território peninsular. Mas enquanto no Magrebe, viviam no deserto ou nas montanhas mesmo à porta de casa, para chegarem ao Andaluz, as tribos tinham de atravessar o mar»


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A Formação da Sociedade de al-Ândaluz
«Artobás e os seus filhos mantiveram-se como cristãos mas tiveram que repartir largamente as suas terras. Ao contrário, sua sobrinha Sara a Goda constitui o exemplo da introdução das mulheres peninsulares na família agnatícia e poligâmica dos conquistadores. Os grupos tribais ou clânicos árabe-berberes, agnatícios e endogâmicos, mantiveram-se pelo menos até aos começos da época califal enquanto as grandes famílias peninsulares se esbatiam entre os séculos VIII e IX. A assimilação dos hispanos à cultura árabe-berbere não ocorre apenas no campo religioso e linguístico mas também no campo social e político.
Os grupos berberes que entraram em Espanha na época da conquista eram originários do norte de Marrocos e da Argélia ocidental e central mas alguns contingentes provinham das grandes tribos nómadas de origem tripolitana como os Nafza e os Hawwara. Os escritores muçulmanos do século IX consideravam estas tribos tunisinas, na sua estrutura social, antiga e profundamente arabizadas. Mas nesta sociedade islâmica, aberta ao comércio mas dominada pelo poder tribal, grassava a contradição cidade/tribo ou usando as palavras do poeta santareno Ibn Sara lavrava a antipatia entre os beduínos e os habitantes das cidades. Nesta contradição, as cidades levavam a melhor destribalizando a tal ponto a sociedade que, numa carta ao califa Yusuf ibn Tasfin, Almutamide escreveu: “as nossas genealogias alteraram-se… forma-mos povos e não tribos”.
As invasões almorávidas e almóadas trouxeram novo alento aos clãs em território peninsular. Mas enquanto no Magrebe, viviam no deserto ou nas montanhas mesmo à porta de casa, para chegarem ao Andaluz, as tribos tinham de atravessar o mar. A partir do século X, quando Abederramão III estendeu o seu domínio ao norte de Marrocos, incrementou-se a ligação entre o Andaluz e o Magrebe. Nos séculos XI e XII, as dinastias africanas dos almorávidas e dos almóadas firmaram as ligações entre as duas margens. Médicos, literatos, filósofos andaluzes caminham para a corte dos califas em Marraquexe. Nos arredores, em Agmat, morreu cativo o rei poeta Almutamide e mais tarde a tríade dos grandes filósofos do Andaluz, Avempace, Ibn Tufayl e Averróis. Mas este último, na sua Exposição da “República” de Platão lembra que nos diferentes povos há indivíduos mais aptos para o saber do que outros. E os povos com mais provas dadas eram os gregos e, nos países islâmicos, primeiramente o Andaluz, e também a Síria, o Iraque e o Egipto, esquecendo-se de sugerir o Magrebe.
As ligações entre as duas margens levavam também a situações que se expressam no poema do eborense Isa ibn al-Wakil:

Um exilado na terra do Magrebe
Tem o coração dividido
Entre duas afeições:
Salé tomou uma parte
Évora a outra.

Vejamos um pouco mais de perto o ritmo de islamização no Andaluz. O episódio já citado da luta entre cáicidas e cálbidas, o surto dos muladis que desde a primeira hora se integraram como clientes nos poderes tribais e a revolta do arrabalde de Córdova sugerem que a religião dos vencedores ganhara adeptos, desde os primeiros anos, não só em Córdova como nos habitantes das outras cidades.
Ibn Mozain afirma que, no ocidente, com excepção de Santarém e Coimbra, as terras foram conquistadas à viva força e distribuídas entre os soldados, depois de deduzido o quinto para o tesouro pio. No sul de Portugal, logo no primeiro meio século, começa a processar-se a arabização e islamização do território, levada a cabo pelos árabes iemenitas Yahsubi que, sob a direcção do chefe de clã Abu I-Sabbah al-Yahsubi, se estabeleceram em Beja e no Algarve.
Richard W. Bulliet, baseado numa análise estatística dos nomes dos juristas islâmicos compilados nos dicionários biográficos, considera que a taxa de conversão no Andaluz não se afasta muito das curvas de conversão em países orientais como o Iraque, o Irão, a Síria e o Egipto. A princípio, as conversões seriam em pequena escala mas à medida que alguns abraçavam o Islão, aumentava a probabilidade de que outros o fizessem. Nos finais do século IX, as conversões andariam por cerca de 1/4 da população hispano-romana. Em 912 ainda a população cristã seria maioritária mas os hispanos já islamizados, sem contar os árabes e berberes, andariam por 2,8 milhões. A partir do século X, inicia-se um período explosivo que leva à conversão da maioria dos hispanos. Por volta do ano 1100, 80% da população do Andaluz seria islâmica, cabendo os outros 20% às minorias cristã e judaica». In António Borges Coelho, Tópicos para a História da Civilização e das Ideias no Gharb al-Ândalus, Instituto Camões, Colecção Lazúli, 1999, IAG-Artes Gráficas, ISBN 972-566-205-9.

continua
Cortesia de Instituto Camões/JDACT