«Nas revistas e jornais
literários de então, eram frequentes os artigos sobre o romancista escocês e as
dissertações acerca do género por ele criado. Em notícia crítica das duas
traduções de Quintino Durward
aparecidas em 1839, lê-se no volume do Panorama
desse ano:
- Parece a muitos que a tradução de uma novela é a coisa menos importante e talvez a mais escusada do mundo, em tese poderá ser isto verdade, em hipótese nem sempre. Pegar ao acaso em uma dessas mil novelas que os franceses atiram à imprensa anualmente, como mercadoria para o comércio, e traduzi-la em português choco e bastardo, entra na tese; mas trasladar uma novela, como algumas de Walter Scott, onde às vezes se aprende mais história que nos livros dos historiadores, porque estes narram sucessos, e aqueles juntam época e gerações, e trasladá-la em português corrente e limpo, longe de ser coisa inútil, é um bom serviço que se faz à literatura portuguesa. São as novelas os livros que por maior número de mãos correm, e, quando instrutivas e vertidas em boa linguagem, podem, por isso mesmo, fazer grande benefício, não só instruindo e deleitando, mas habituando o vulgo dos leitores a pouco e pouco se aborrecerem dos desconcertos, barbarismos e neologismos escusados, de que anda inçada essa linguagem de novelas e conversações, a que chamam, cremos que por escârneo, língua portuguesa. Nesta hipótese entra, em nosso entender, a tradução de Quintino, feita pelo Ramalho. Todas as pessoas que têm lido no original as obras de Walter Scott, sabem quão grande dificuldade achava quem quiser traduzir com primor qualquer das suas novelas, e poemas. Essa dificuldade venceu-a o Ramalho excelentemente, dando-nos a sua tradução, com toda a energia, natureza e verdade, as galas nativas com que o escritor escocês adornou o seu Quintino. Infelizmente, não podemos dizer o mesmo da versão feita em Paris: o Moura, posto que mais aprimorasse esta obra do que a tradução de Ivanhoe, ainda está longe de merecer os elogios que de bom grado lhe daríamos, se nossa consciência nos não obrigasse a ser justos. Serviu-se, segundo nos parece, da versão francesa de Defauconpret, que por certo não é a mais fiel. Foi por isto, talvez, que a sua tradução tem o gravíssimo defeito de estar incompleta, faltando-lhe a conclusão da obra, que o autor escreveu muito depois de ter publicado o seu livro, e que se acha nas edições inglesas mais modernas, bem como na versão francesa de Montemont que, a não traduzir do original, o Moura devia antes ter seguido»
E, no Panorama, Herculano não só
preparava o público para o novo género de novela como também acumulava
informações eruditas para ilustração dos futuros novelistas, seja sobre a arquitectura
gótica, situação das diversas classes sociais na Idade-Média, antigos foros e
costumes, milícia, monumentos, cronistas portugueses, etc., etc..
Em 1837, O Panorama publicou, sem
nome de autor, uma narrativa intitulada Quadros
de História Portuguesa - Morte do Conde Andeiro e do Bispo de Lisboa - 1383.
É apenas um esboço daquela narrativa que, mais tarde, Herculano intitulou Arrhas por foro de Espanha. Em
1838 o mesmo jornal literário publicou uma outra narrativa: O Castelo de Faria e
pouco depois O Mestre Assassinado,
Crónica dos Templários - 1320, ambas anónimas. Nesta última pretendeu o
autor, sugestionado pelo Ivanhoe,pintar um quadro das
violências dos Templários. Tentativa tosca.
Seguiu-se, na série, Mestre Gil, também sem nome a autorizá-lo, mas que Herculano confessou
pertencer-lhe. Nesta Crónica do
Século 15.º transparece a imitação do Quintino Durward de
Scott, cujo tempo histórico, como é sabido, é o da luta entre Luís XI e o duque
de Borgonha. No trabalho de Herculano o fundo histórico é o da luta de João
II com os duques de Viseu e de Bragança. Aí, já o diálogo tem vivacidade e
os personagens, embora pouco individuados, são recortados com certo jeito
pitoresco. Além disto, a narrativa aparece já com alguns laivos da cor local requerida em tal género
de escritos. Mestre Gil é quase um sósia do barbeiro de Luís XI, e o
nosso João II não deixa de lembrar o rei francês tal como Scott o pintou no seu
romance. É também deste mesmo ano A
Abóbada, já autorizada com o nome de Herculano, onde os progressos
técnicos, linguísticos e cor histórica revelam o nosso primeiro romancista histórico.
Em 1839, Herculano
publica no Panorama a narrativa
O Cronista - Viver e Crer de outros
tempos. A acção passa-se no reinado de João III, quando começaram
a correr as notícias da chegada da bula papal que concede ao rei a autorização
para o estabelecimento do tribunal da
fé em Portugal. Ao compilar as Lendas
e Narrativas enjeitou Herculano esta narrativa que lhe saíra da
pena inferior à Abóbada e à Morte do
Lidador. Também Cunha
Rivara tentou por esta altura (1840), nas colunas do Panorama, cultivar o género; Um Feiticeiro (Crónica da
Inquisição), é uma narrativa dialogada em que se descrevem os
trabalhos por que passou Luís de la
Penha, mágico e feiticeiro, a contas com a Inquisição (maldita) até à
realização do auto de fé em que figurou na cidade de Évora. Esta fastidiosa
enumeração, que podia ser bastante alargada para além do essencial, julgamos ser
suficiente para dar o ambiente de audiência ao género de ficção literária que
com o Monge de Cister vai
aparecer em Portugal, com um êxito até aí desconhecido em aceitação de obras
literárias originais». In Castelo Branco Chaves, O Romance
Histórico no Romantismo Português, Instituto de Cultura Português, Centro
Virtual Camões, Instituto Camões, oficinas Gráficas da Livraria Bertrand, 1980.
Cortesia do Instituto
Camões/JDACT