quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Elogio da Loucura. Erasmo. «… faço-os beber a água do olvido que dilui pouco a pouco os cuidados e rejuvenesce a alma. Deliram, ficam tontos, dizem tolices? É isso mesmo; readquirem a infantilidade. Não é próprio da puerícia a inconsciência e a inconsequência?»

jdact

Fala a loucura
«À infância, que não fala, segue-se a puerícia que a todos agrada, que encanta pela candura, que todos solicitamente ajudam de mãos estendidas. Donde vem esta graça da juventude? Donde, se não de mim, que afasto essas idades tanto da sabedoria como dos tristes cuidados? Estou a mentir? Vede então:
  • quando crescem, estudam, adquirem o uso das coisas e a disciplina da vida, a alacridade languesce, a alegria arrefece, a vivacidade decai. É a adolescência.
À medida que se afasta de mim, o homem vai vivendo com menos intensidade até que chega à senilidade tão molesta para ela como importuna para os outros, e que seria insuportável se eu não interviesse em socorro de tantas misérias. Tal como, no dizer dos poetas, os deuses protegem com uma metamorfose aqueles que querem salvar da morte, assim eu reconduzo à puerícia os velhos que estão à beira do túmulo.
O vulgo costuma dizer que eles estão na segunda infância. Não ocultarei o modo por que efectivo essa transformação. Conduzo os velhos à fonte da nossa Leté, a que nasce nas ilhas Afortunadas, porque nos Infernos não corre mais que um riacho; faço-os beber a água do olvido que dilui pouco a pouco os cuidados e rejuvenesce a alma. Deliram, ficam tontos, dizem tolices? É isso mesmo; readquirem a infantilidade. Não é próprio da puerícia a inconsciência e a inconsequência? Haverá pessoas tão odiosas como esses meninos portentos, que exibem uma sabedoria viril? Bem diz o adágio vulgar: Odeio a sabedoria precoce da criança...
Quem poderia ter por amigo e companheiro um velho que aliasse à experiência completa da vida o vigor intelectual e o juízo acrimonioso? Mais vale que o velho delire. Este delírio liberta-os dos cuidados e das misérias da vida que atormentam o homem sisudo. Vai bebendo o seu vinho. Não sente o tédio da vida que uma idade mais robusta suporta. Por vezes regressa às três letras A. M. O. como o velho de Plauto, e não é infeliz porque é estulto, agradável aos amigos, e jovial na conversa. Já dizia Homero que da boca de Nestor fluíam palavras mais doces que o mel, enquanto o discurso de Aquiles era amargoso; dizia ainda que os velhos reunidos junto dos muros da cidade proferiam palavras floridas. Pelo que se pode calcular em quanto superam a própria infância, idade muito feliz e agradável mas que não tem o prazer da tagarelice». In Erasmo de Roterdão, Elogio da Loucura, tradução de Álvaro Ribeiro, colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1987.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT