«Diz-se revolução, ensinam os dicionários burgueses, o movimento de
um corpo que, descrevendo uma curva fechada, passa sucessivamente pelos mesmos
lugares; os revolucionários de há 20 anos descobriram, pelo menos na Europa,
que os dicionários sabem mais de revoluções do que o livrinho vermelho das
citações. Continuam (continuamos) tão
razoáveis como dantes; só que já não exigimos o impossível, mas tão só
deixarmos de ser pobres e, se não for pedir muito, sermos ricos, ou podermos
ostentar look em conformidade: o BMW (ou, ao menos, o Rover), o American Express (ou, ao menos, o Visa), a casa de praia
(nem que seja em time sharing), o fato
Pestana & Brito (na pior das
hipóteses da Alfaiataria Ayres), as
acções da SONAE (ou, vá lá, da PROADEC).
Burgueses éramos, já então, todos, ou ainda menos, como Cesariny solitariamente explicava
em pleno consulado neo-realista. Hoje continuamos a ser burgueses, mas já não
vemos, afinal, mal nenhum nisso. O compromisso político foi substituído pela
chamada transgressão estética e já ninguém deixa de ir ao S. Carlos por
causa do smoking. Todos queremos ser burgueses e os poucos corações
proletários não são poupados pelas prosas convertidas de Pacheco Pereira
e de Vilaverde Cabral.
Estes tempos são tempos de arrependidos de todos os géneros:
- Bob Dylan está cheio de dinheiro e usa lentes de contacto;
- Regis Debray estuda Milton Friedman às escondidas. Não transformámos o mundo nem mudámos a vida;
- A vida é que nos mudou a todos (o Che morreu na Bolívia, baleado por um ranger anónimo);
- José Afonso morreu de doença;
- O Artur Queirós ganhou o Prémio Ibéria de Jornalismo.
Foi uma derrota sem glória, pelo menos sem tanta glória como a denota
dos nossos pais nas trincheiras de Valência, nos campos de Almeria, ou passando
o Ebro en un barquito de vela. Os revolucionários, mesmo os de café,
são os corn…. da História; nós nem por isso. Os cafés passaram a bancos e as
namoradas com quem, de mãos dadas, atravessámos os anos da brasa, sobre as
barricadas do Quartier Latin ou nos jardins da Cidade Universitária, são
hoje (ou já foram, jdact) professoras do liceu e assinantes do Círculo de Leitores. Restam-nos alguns
discos, alguns livros, algumas memórias. E nem temos uma história, uma grande
história, para contar aos filhos, porque os nossos filhos preferem as histórias
dos campeões da Wall Street e emocionam-se mais com um crash
da Bolsa do que com verduras românticas com pavés, slogans,
ocupações selvagens. Elvis Presley, afinal, não era informador da CLA? João XXIII
não tinha acções nas fábricas de material de guerra? Giap não tinha campos de
concentração? Fidel não tinha Padilla a apodrecer numa cadeia? In Jornal de Notícias, 5/3/88.
Contra os Economistas
A infância é um lugar de exílio. Se não tivermos, em qualquer sítio
do coração, uma infância, onde nos refugiaremos quando os ladrões vierem para
nos roubar a inocência e os sonhos e quando os assassinos baterem à porta? Se não
tivermos uma pequena infância que seja (um
jardim longínquo, um vago quarto de dormir perdido), onde guardaremos os
segredos mais secretos e onde brincaremos ainda? E quem nos responderá quando,
diante do nosso rosto no espelho, nos virmos e não nos reconhecermos, ou
quando, nos dias de infelicidade, chamarmos pelo nosso nome?
E, todavia, é tão difícil imaginar que alguns dos homens de sucesso com
quem nos cruzamos na rua ou com quem convivemos na TV e nas colunas sociais
tenham sido alguma vez crianças! Mesmo quando as revistas os mostram de bibe,
em desvanecidas fotografias, posando compostamente em melancólicos estúdios e
fitando desamparados a câmara, metidos em fatos inimagináveis, custa a crer que
sejam eles, ou que alguma vez o tenham sido, e que esses pequenos seres
transidos tenham podido resistir à fastidiosa seriedade com que venceram
naquilo a que eles hoje chamam vida.
As estatísticas não falam disso, mas na nossa sociedade há uma enorme e
perigosa carência de infância. Nos homens, nas instituições, na vida de todos os
dias. E uma enorme carência de sonhos e de coisas verdadeiramente grandes,
razões ou desejos. Os sonhos, que pertencem a uma frágil e excessiva espécie,
foram as principais vítimas da mortandade liberal dos últimos anos, substituídos
por monstros gélidos chamados planos, programas, projectos.
(Que coração, de homem ou de sociedade,
sobreviverá alimentando-se, não do desmesurado sangue dos sonhos, mas de programas e de projectos?)» In Manuel António Pina, O Anacronista,
Crónicas, Edições Afrontamento, 1994, ISBN 972-36-0323-3.
continua
Cortesia de E. Afrontamento/JDACT