sábado, 15 de dezembro de 2012

Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650. Raquel Patriarca. «São os homens ligados às artes e às letras, à filosofia e às ciências os que se sentem mais afectados pela imposição de sistemas de referências dogmáticos, que tendem a limitar e a delimitar de forma rigorosa o âmbito e conteúdo da sua produção artística, literária, filosófica e científica»


jdact e cortesia de wikipedia

O Contexto
Notas sobre as mentalidades nos séculos XVI e XVII
«É dali que partem as informações de natureza política mais importantes para a comunidade: notícias sobre o casamento do rei, sobre a sua morte e sucessão, declarações de início e fim da guerra. É ainda ali que ocorrem actos tão importantes como o arrolamento no exército ou a cobrança de impostos. As comunidades regem-se igualmente pelo toque dos sinos que dividem o dia em função das horas litúrgicas. O sino da igreja assinala ora acontecimentos festivos (como nascimentos, casamentos e chegada do rei), ora acontecimentos de pesar (as mortes), ora catástrofes (como incêndios ou perigos de invasão), sendo, assim, um ponto de referência temporal para grande parte da comunidade. O calendário produtivo, designadamente agrícola, aparece ligado ao tempo religioso.
As celebrações do S. Miguel e do S. Martinho marcam, por exemplo, a época das prestações dos arrendamentos rurais. As paragens do trabalho são determinadas pelas festas religiosas. Mesmo os casamentos não se fazem na altura da Quaresma, por ser época de abstinência sexual. O século XVI surge, neste e noutros domínios, como tempo charneira. A igreja, que até então tinha mantido o estatuto de centro religioso, social e político, vai assistir, sobretudo a partir do Concílio de Trento, a um processo de progressiva sacralização. Nesta fase e num crescendo de rigor da Igreja Católica, são excluídas do seu espaço algumas manifestações profanas, caso das mascaradas, do teatro profano, das lutas paródicas.
Mas a falta de informação, os fracos meios de imposição de regras e o natural arreigamento das populações às suas tradições e aos seus rituais colectivos fazem com que muitas determinações tridentinas não recebam a adesão pretendida. Assim, continuam a coexistir, no espaço da Igreja, celebrações religiosas e celebrações profanas, de que são exemplo a Festa dos Loucos, a Festa dos Anos, os Risos Pascais e o Carnaval. São sobretudo os actos da vida pública que se vêm condicionados ou que encontram fundamento na religião. Esta, qual bússola, norteia atitudes e comportamentos políticos. Um dos actos públicos mais marcantes é a cerimónia da Unção Régia, a que se submetem os aspirantes à Coroa. O que é importante é o facto de este ritual ser indispensável à legitimação do poder régio, conferindo, assim, um enorme ascendente à Igreja.
Um outro campo em que o poder religioso e o poder temporal surgem fortemente imbricados é o da justiça. Nesta época todos os códigos jurídicos europeus estão saturados de concepções religiosas e prevêem penas para crimes de natureza religiosa, como acontece com a heresia nas Ordenações Afonsinas. Os decretos resultantes dos Concílios, bem como algumas deliberações pontifícias, são absorvidos nos corpos legislativos nacionais, passando a constituir lei no reino e a ser aplicados por organismos de justiça civis.



Da mesma forma as actividades económicas e a vida profissional estão sujeitas a princípios éticos cujas raízes e razões de ser se encontram nos preceitos da moral cristã. A condenação da usura tem um forte pendor religioso, condenação que ganha nova perspectiva se tivermos em conta que esta prática não é excluída quando levada a cabo em círculos religiosos. Por sua vez, muitas das corporações de artes, ofícios e mesteres estão ligadas a confrarias, votadas ao culto de um santo patrono, sendo sob sua égide que se apresentam, de símbolos e pendentes, nas procissões religiosas da sua comunidade. Contudo, são os homens ligados às artes e às letras, à filosofia e às ciências os que se sentem mais afectados pela imposição de sistemas de referências dogmáticos, que tendem a limitar e a delimitar de forma rigorosa o âmbito e conteúdo da sua produção artística, literária, filosófica e científica. Nas universidades, o predomínio de membros do clero entre o seu corpo docente e discente, a vivência diária de professores e alunos, o tipo de cursos e curricula, a orientação científica dominante fazem destas instituições um espaço de produção e de transmissão do saber submetidas a certo tipo de limites e condicionamentos». In Raquel Patriarca, Um Estudo sobre a Inquisição de Lisboa. O Santo Ofício na Vila de Setúbal, 1536-1650 Dissertação de Mestrado em História Moderna, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, 2002.

Cortesia da U. do Porto/JDACT