domingo, 30 de dezembro de 2012

Manifesto [adaptado] anti-… e por extenso. Poeta d'Orpheu Futurista e Tudo. José de Almada-Negreiros. «Trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao “Futurismo”»


jdact e cortesia de wikipedia
  
NOTA: Brincando com as palavras. Onde está … deveria ler-se Dantas

Manifesto Anti-Dantas
Este texto virulento do jovem Almada, que contava 23 anos, terá sido escrito entre Abril e Setembro de 1916, sendo, portanto, anterior à conferência de 1917, início oficial do movimento futurista em Portugal. Saiu este folheto de 8 páginas impresso em papel de embrulho, ao preço de 100 reis, utilizando aqui e além, para sublinhar a onomatopeia - PIM!-, uns ícones representando uma mão no gesto de apontar. Segundo se diz, terá esgotado nos primeiros dias, por obra do açambarcamento do próprio visado. Apesar disso, ou graças a isso, o escândalo rapidamente se propalou e a polémica causada teve uma grande intensidade. É que, no fundo, não é só a pessoa de Dantas que é atacada, mas toda uma geração de literatos, actores, escritores, jornalistas, etc, que ele personificava:
  • Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi.
Através da ironia e do sarcasmo, utilizando uma linguagem iconoclasta e insultuosa, abusando de exclamações, repetições e enumerações, Almada zurze o academismo instalado e os valores tradicionais que pretendia abalar. Em suma, trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao Futurismo e a si próprio.

Basta PUM Basta!
Uma geração, que consente deixar-se representar por um … é uma geração que nunca o foi! É um coio d'indigentes, d'indignos e de cegos! É uma rêsma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração!
Morra o … , morra! PIM!
Uma geração com um … a cavalo é um burro impotente! Uma geração com um … à proa é uma canôa uni seco! O … é um cigano! O … é meio cigano! O … saberá grammática, saberá syntaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias p'ra cardeais saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ellle faz! O … pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquezas! O … é um habilidoso! O … veste-se mal! O … usa ceroulas de malha! O … especúla e inócula os concubinos! O … é … ! O … é júlio!
Morra o … , morra! PIM!
O … fez uma sorôr marianna que tanto o podia ser como a sorôr ignez ou a ignez de castro, ou a leonor telles, ou o mestre d'aviz, ou a dona constança, ou a nau cathrineta, ou a maria rapaz! E o … teve cláque! E o … teve palmas! E o … agradeceu! O … é um ciganão! Não é preciso ir p'ró rocio p'ra se ser um pantomineiro, basta ser-se pantomineiro! Não é preciso disfarçar-se p'ra se ser salteador, basta escrever como … ! Basta não ter escrúpulos nem moraes, nem artísticos, nem humanos! Basta andar co'as modas, co'as políticas e co'as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado e usar côco e olhos meigos! Basta ser judas! Basta ser … !
Morra o … , morra! PIM!
O … nasceu para provar que, nem todos os que escrevem sabem escrever! O … é um automato que deita pr'a fora o que a gente já sabe que vae sahir... mas é preciso deitar dinheiro! O … é um soneto d'elle-próprio! O … em génio nunca chega a pólvora secca e em talento é pim-pam-pum! O … nú é horroroso! O … cheira mal da boca!
Morra o … , morra! PIM!


O … é o escarneo da consciência! Se o … é portuguez eu quero ser hespanhol! O … é a vergonha da intellectualidade portugueza! o … é a meta da decadência mental! E ainda há quem não córe quando diz admirar o … ! E ainda há quem lhe estenda a mão! E quem lhe lave a roupa! E quem tenha dó do … ! E ainda há quem duvide de que o … não vale nada, e que não sabe nada, e que nem é intelligente nem decente, nem zero! Vocês não sabem quem é a soror marianna do … ? E vou-lhes contar:
  • a princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quaes nada temos que vêr, pensei tratar-se de sorôr marianna alcoforado a pseudo auctora d'aquellas cartas francezas que dois illustres senhores d'esta terra não descançaram enquanto não estragaram p'ra portuguez, quando subiu o panno também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de beja disse que tinha estado à espera do nascer do sol!;
  • a marianna vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só. Traz também o chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na brazileira do chiado. Pouco depois o bispo de beja é que me disse que elle trazia calções vermelhos. A marianna e o chamilly estão sòzinhos em scena, e às escuras dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. depois o chamilly, completamente satisfeito despede-se e salta p'la janella com grande magua da freira lacrimosa. E anda hoje os turistes teem occasião de observar as grades arrombadas da janella do quinto andar do convento da conceição de beja na rua do touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em paris e dentista em lisboa;
  • a marianna que é histérica começa de chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excellente pau de cabeleira sorôr Ignez;
  • veem descendo p'la dita estreitíssima escala (sic), varias mariannas todas eguaes e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengalla e ainda (sic) toda curvada p'rá frente o que quer dizer que é abadessa;
  • e seria até uma excelente personificação das bruxas de goya se quando fallasse não tivesse aquella voz tão fresca e maviosa da tia felicidade da vizinha do lado, e reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e immensa falta de corda...
Quem está ahi?... E de candeias apagadas? Foi o vento, dizem as pobres innocentes varadas de terror... E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada p'rá frente manda tocar a sineta que é um dó d'alma o ouvi-la assim tão debilitada, vão todas p'ró côro, mas eis que, de repente batem no portão e sem se annunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra p'lo salão um bispo de beja que quando era novo fez brégeirices co'a menina do chocolate. Agora completamente emendado revela à abbadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavallos a saltar p'la janella. A abadessa diz que effectivamente já há tempos que vinha dando p'la falta de gallinhas e tão innocentinha, coitada, que n'aquelles oitenta annos ainda não teve tempo p'ra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres.
Depois de sérios embaraços do bispo é que ella deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco co'as candeias apagadas. n'esta altura esta peça policial toma um pedaço d'interesse porque o bispo ora parece um polícia de investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d'investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o público já está farto de saber - que a marianna dormiu co'o noel. o peor é que a marianna foi à serra co'as indiscreções do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando p'ra tudo aquillo. esteve mesmo muito perto de se estrelar com um par de murros na corôa do bispo no que (se) mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta a tocar uma marcha de clarins e marianna sentindo nas patas dos cavallos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janella a gritar desalmadamente p'lo seu noel. Grita, assobia e redopia e pia e rasga-se e magóa-se e cae de costas com um accidente, do que já previamente tinha avisado o público e o panno também cae e o espectador também cae da paciência abaixo e desata n'uma destas pateadas tão enormes e tão monumentaes que todos os jornaes de lisboa no dia seguinte foram unânimes n'aquelle êxito teatral do dantas. A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquillo não era a sorôr alcoforado mas sim uma merdarianna aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuaes.
Continue o senhor … a escrever assim que há-de ganhar muito co'o alcufurado e há-de ver, que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do porto, e uma exposição das maquetes p'ró seu monumento erecto por subscriçao nacional do século a favor dos feridos da guerra, e a praça de camões mudada em praça do dr. julio dantas, e com festas da cidade p'los anniversários, e sabonetes em conta «julio dantas» e pastas … p'rós dentes, e graxa … p'rás botas, e niveina … , e comprimidos … e autoclismos … e … , … e limonadas … - magnesia.
E fique sabendo o … que se um dia houver justiça em portugal todo o mundo saberá que o autor dos luzíadas é o … que n'um rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo camões. E fique sabendo o … que se todos fôssem como eu, haveria taes munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar. Mas juygaes que n'isto se resume a litteratura portugueza? Não! Mil vezes não! Temos, além d'isto o chianca que já fez rimas p'ra alubarrota que deixou de ser a derrota dos castelhanos p'ra ser a derrota do chianca. E as pinoquices de vasco mendonça alves passadas no tempo da avôsinha! E as infelicidades de ramada curto! E o talento insólito de urbano rodrigues! E as gaitadas do brun! E as traducções só p'ra homem o illustríssimo excelentíssimo senhor mello barreto! E o frei matta nunes môxo! e a ignez syphilitica do faustino! E as imbecilidades do sousa costa! E mais pedantices do … ! E alberto sousa, o … do desenho! e os jornalistas do seculo e da capital e do noticias e do paiz e do dia e da nação e da repubuca e da lucta e de todos, todos os jornaes! E os actores de todos os theatros! E todos os pintores das bellas artes e todos os artistas de portugal que eu não gosto. E os da aguia do porto e os palermas de coimbra! E a estupidez do oldemiro cesar e o doutor josé de figueiredo amante do museu e ah oh os sousa pinto hu hi e os burros de cacilhas e os menús do alfredo guisado! e (o) rachitico albino forjaz sampaio, critico da lucta a quem o fialho com immensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são politicos e artistas! E as exposições annuaes das bellas arte(s)! E todas as maquetas do marquez de pombal! E as de camões em paris! E os vaz, os estrella, os lacerda, os lucena, os rosa, os costa, os almeida, os camacho, os cunha, os carneiro, os barros, os silva, os gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os scelerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os lopes, os peixotos, os motta, os godinho, os teixeira, os diabo que os leve, os constantino, os grave, os mantua, os bahia, os mendonça, os brazão, os mattos, os alves, os albuquerque, os sousas e todos os … que houver por ahi!!!!!!


E as convicções urgentes do homem christo pae e as convicções catitas do homem christo filho! E os concertos do blanch! E as estatuas ao leme, ao eça e ao despertar e a tudo! e tudo o que seja arte em portugal! E tudo! Tudo por causa do … !
Morra o … , morra! pim!
Portugal que com todos estes senhores, conseguiu a classificação do paiz mais atrazado da europa e de todo omundo! o paiz mais selvagem de todas as áfricas! o exilio dos degradados e dos indiferentes! a africa reclusa dos europeus! o entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro ha-de abrir os olhos um dia - se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará commigo, a meu lado, a necessidade que portugal tem de ser qualquer coisa de asseiado!
Morra o … , morra! pim!
José Almada-Negreiros, poeta d'orpheu, futurista e Tudo
Abril ou Setembro de 1916


JDACT