(I)recuperável Antero
«[…] como o arquétipo de uma classe humilhada incapaz de levar a sua
revolta mais além que a consciência imediata, só podia nascer à sombra de um
desses mediadores da revolta em “espírito”, esses cruzados da utopia que são os
intelectuais dignos desse nome. E quem, em Portugal, o foi, mais que Antero?
‘Há em nós todos uma voz íntima que protesta em favor do passado,
quando alguém o ataca; a razão pode condená-lo; o coração tenta ainda absolvê-lo’.
In
Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, 1871.
Por distracção ou bondade de alma, a nossa memória cultural é pouco
conflituosa. As dissidências da vida, o tempo as aquece e minimiza. Santo
de tempos de orfandade, ou presença culpabilizante no nosso idílico jardim da
alma, Antero parece gozar, sem sobressaltos,
da sua merecida imortalidade. Mas é um engano e nesse engano há mais vida e
verdade que na glorificação obrigatória dos manuais. A cem anos da sua voluntária
morte, Antero ainda tem inimigos. E
merece tê-los. O horror seria que os não tivesse. Declarados, não são muitos.
Em filigrana, são mais do que se imagina e, entre eles, vários candidatos a
heróis que suportam mal que Antero tenha sido o primeiro deles nos tempos modernos.
Na verdade, é por causa deste estatuto e do que ele representa que
Antero suscitou recusas, explícitas
ou implícitas. Recusas ou reticências nunca lhe faltaram em vida, não só dos
que passam por seus inimigos ou adversários no campo das ideias, como dos seus
próprios companheiros de geração. A visão unanimista da Geração de 70, que tem
nele o seu ícone cultural, esconde mal os conflitos, os antagonismos, as
rivalidades, surdas ou proclamadas que, como a matéria viva, a atravessaram.
Nada de mais natural, Antero surgiu na ribalta como nosso
justiceiro, nosso guerreiro, o olhar dos outros ampliou e deformou
mesmo uma imagem em que cedo não se reconheceu, mas que terá de pagar até ao
fim.
Nem é, de excluir que o seu trágico fim não se possa relacionar
com as dificuldades de assumir a juvenil armadura de herói. Mas o que
interessa, em termos de mitologia cultural, a cem anos de distância, não é a peripécia
subjectiva das inimizades que suscitou, nem sequer das reticências críticas que
tal aspecto da sua obra ou tal atitude política suscitaram no seu tempo ou
depois. Hoje nem é sequer como referência simbólica, se não carismática, da ideia
socialista, com maior ou menor repercussão no destino da sua vida e
mesmo da sua obra, que Antero é
ainda sinal de contradição. As reticências ou recusas em relação a Antero visam-no como símbolo de uma revolução
cultural que nem é de natureza literária, nem política, nem mesmo
ideológica ou banalmente filosófica, embora se traduza em todos esses planos,
mas religiosa.
A expressão é equívoca, talvez o conceito de revolução espiritual
fosse mais adequado, mas seria sociologicamente menos apto para descrever o
fenómeno que esse Antero encarnou e
o tornou, para si e para os outros, não só problemático, mas lugar de
problematização do que até ele não tivera expressão consequente e, sobretudo,
poder para dramatizar, em profundidade, a cena cultural
portuguesa. Melhor será dizer inventar essa cena que antes dele não existia.
Simples poeta, seduzido pela especulação metafísica de um século apostado em
desfazer-se precisamente da metafísica; sem educação teológica
particular, Antero de Quental
assumiu, com uma seriedade total, primeiro aquilo que ele descreverá como ruptura
com a tradição, quer dizer, com a crença tal como o Catolicismo a encarnava
entre nós, desde sempre, e em seguida o projecto, ou a missão profética de substituir
o que ele mesmo sabia insubstituível». In Eduardo Lourenço, Antero ou a Noite
Intacta, Gradiva, 2007, ISBN 978-989-616-181-1.
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