sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

“Começar” ou Ode à Geometria. Almada Negreiros. Luís Reis. «À primeira vista trata-se de uma sucessão de traçados geométricos, com profusão vertiginosa de linhas e arcos, secundados por texto, números e relações matemáticas mais discretas, que valem pelo equilíbrio estético e pelo jogo de cores»

jdact e cortesia de wikipedia

O cânone
«O painel Começar é a derradeira grande obra de Almada Negreiros (São Tomé, 1893 - Lisboa,1970). Está no átrio da sede da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. É uma obra extensa, gravada em calcário polido, com 12,87m de comprimento e 2,31 m de largura. Almada projectou a obra em 1968 e acompanhou de perto a sua execução no ano seguinte, por uma equipa de operários especializados. A obra foi inaugurada em Outubro de 1969.
À primeira vista trata-se de uma sucessão de traçados geométricos, com profusão vertiginosa de linhas e arcos, secundados por texto, números e relações matemáticas mais discretas, que valem pelo equilíbrio estético e pelo jogo de cores. Em 12 de Fevereiro de 1969, Jorge de Sena proferiu uma conferência sobre Almada Negreiros Poeta.
Almada, presente, pediu a palavra no fim, tendo a certa altura dito:
  • “Eu acabei agora de fazer um trabalho de vários meses, oito meses consecutivos, trabalho obcecante, a ter de fazer. Em pormenor, basta dizer que o médico todos os dias me dizia: Você está-se a matar! e eu respondia-lhe: Mas se não fizer isto, morro! […] Vou simplesmente dizer o título da obra que eu concluí, que é uma obra síntese de tudo o que eu fiz na minha vida: é a Geometria. O título é Começar
Este painel aperfeiçoa e aprofunda a mensagem já transmitida na tapeçaria O Número, executada por Almada para o Tribunal de Contas de Lisboa (1958). É uma viagem às raízes da cultura, na procura do cânone, o conjunto de regras que atravessa tempos e civilizações. Declarou Almada numa entrevista ao Diário de Notícias (16.06.1960):
  • Nós não pretendemos senão encontrar o cânone e não supusemos nunca que determinada época fosse a exclusiva. E assim é que, hoje, uma vez terminado o trabalho, uma vez chegado ao resultado, assim acontece. O cânone não está exclusivamente nos exemplos da Idade Média, não está só nos exemplos da Suméria, não está só nos de Creta, Gregos, Bizantinos, Árabes, Hebraicos, Romanos ou Góticos. Ele está sempre e é por isso mesmo que ele é cânone. E cada época tira do cânone as suas regras. As leituras feitas de documentos antigos confirmam o que eu digo.
O estudo deste cânone absorveu Almada. Desde 1916, quando se interessou pela primeira vez pela tábua quatrocentista Ecce Homo, (da Escola) de Nuno Gonçalves, nunca mais abandonou o desenvolvimento das intuições e descobertas que então lhe ocorreram. O painel Começar é, pois, o seu legado espiritual às gerações vindouras. O título escolhido foi como se nos quisesse dizer que o seu último esforço não era mais do que um ponto de partida nesta demanda cósmico-filosófico-artística.

O painel
A descrição e análise que se apresenta segue de muito perto a proposta de João Furtado Coelho no artigo Os princípios de Começar. Assim, e apesar da sua interpenetração física e orgânica, é sugerida a divisão da composição em cinco partes, a saber, da esquerda para a direita:
  • P1 - dominada por um círculo C1;
  • P2 - dominada por um círculo C2, de raio duplo do de C1;
  • P3 - parte central, na qual aparece novamente um círculo C1;
  • P4 - dominada por círculos C2;
  • P5 – dominada por um círculo C1.
Importa ainda sublinhar que, neste texto, as referências a cores devem entender-se como dizendo respeito ao painel original.

Parte P1
No círculo C1 estão inscritos três pentágonos: 
  • um pentágono estrelado, ou pentalfa, a preto, proveniente da divisão do círculo em 5 partes iguais e, portanto, relacionado com a divisão em 10 partes;
  • os outros dois pentágonos côncavos, em beringela e vermelho, têm que ver com determinações de nonas partes do círculo.
Do pentalfa tirou Almada uma maneira muito prática de obter a nona parte do círculo. Aqui aparece já um invariante canónico,

2R = 2 × δ/9 + δ/10

na notação de Almada, que significa: o diâmetro é igual a duas vezes a corda da nona parte mais a corda da décima parte, ou ainda, o diâmetro é igual a duas vezes o lado do eneágono regular mais o lado do decágono regular .



Esta é uma das razões por que Almada usa a expressão relação nove/dez tanto para designar uma constante canónica como para designar o próprio cânone.
Ao tomar as cordas pelos arcos na divisão do círculo cometem-se erros. Porém, os erros absoluto e relativo vão diminuindo com o arco. Quando se chega às nona e décima partes do círculo, então a razão das cordas já é praticamente igual à razão dos arcos. Esta é 9/10; a das cordas pode-se dizer que é igual, com um erro inferior a 4%.
Por isso Almada chamou ao seu sistema relação nove/dez em vez de razão nove/dez, querendo frisar a diferença entre relação e proporção.
Esta parte do painel contém ainda três rectângulos a azul, determinados por nonas partes da circunferência. O menor é o rectângulo √Φ, o médio é o rectângulo 2 e o maior o rectângulo Φ». In Luís Reis, Grupo de Trabalho T3, Centro de Competência CRIE da UCP-ESB, Educação e Matemática, número 92, Março/Abril, 2007.


Cortesia de Educação e Matemática/JDACT