«Os combatentes do Norte reuniram-se no Porto e navegaram em armada
própria para Lisboa. A mobilização para a jornada ultrapassou mesmo um terrível
obstáculo, o do falecimento da rainha Filipa de Lencastre, vítima de
peste. No leito de morte, em Odivelas, encomendou ao cidadão João Vaz de Almada
que lhe trouxesse espadas para os três filhos mais velhos.
- Na entrega, D. Filipa encomendou a Duarte a defesa dos povos, garantindo a todos o cumprimento do direito e da justiça;
- A Pedro, recomendou as donas e as donzelas;
- A Henrique, “os senhores, cavaleiros, fidalgos e escudeiros para serem mantidos em direito e lhes serem feitas aquelas mercês que estiver em razão. Ca muitas vezes acontece que, por informações falsas e requerimentos sobejos dos povos, os reis fazem contra eles o que não devem”.
Os povos tinham muita força.
A morte da rainha provocou forte divisão no último Conselho Régio em Alhos
Vedros. Os três infantes, o meio-irmão Afonso, conde de Barcelos e
mais três conselheiros pronunciaram-se pelo prosseguimento da jornada; os
outros sete manifestaram-se contra. O Condestável estava no segundo grupo e o infante
Pedro, ao que parece, contestou-o com palavras duras.
No extenso rol dos expedicionários, registados no texto assinado por Zurara,
vêm o Condestável, o mestre da ordem de Cristo, o prior do Hospital, o
almirante, o marechal Gonçalo Vasques Coutinho, um filho do infante João de
Castro, irmão mais velho do rei, o conde Pedro, neto do primeiro conde de
Ourém, e outros fidalgos. A seu lado, oficiais, oriundos da nobreza urbana,
como Afonso Furtado, capitão-mor do mar, Gonçalo Lourenço de Gomide, escrivão
da puridade, João Afonso de Santarém, João Afonso de Alenquer, vedor da fazenda
e promotor do feito, Fernão Gonçalves de Arca, João Vaz de Almada e os seus
filhos Pero e Álvaro, Pero Gonçalves Malafaia e seu irmão Luís Gonçalves.
João Afonso de Alenquer sugeriu aos infantes a conquista de Ceuta e
dirigiu a parte económica da empresa. João Vaz de Almada, cidadão honrado de Lisboa,
mercador e cavaleiro, um dos capitães nos Atoleiros, em Aljubarrota e em
Valverde, comandou a hoste de Lisboa. Em Setembro de 1414, o segundo levantou
em Inglaterra quatrocentas lanças; e seu filho Álvaro, mais trezentas e
cinquenta. A empresa teve o apoio quase unânime dos diferentes grupos sociais,
mas as cidades de Lisboa e do Porto e os meios mercantis europeus que giravam à
sua volta tiveram um papel que diria determinante. Os ingleses contribuíram não
só com armas mas com mercenários. O mercador inglês Monde, que arrematara as
rendas da alfândega do Porto, participou pessoalmente com quatro naus e frecheiros
armados à sua custa. Na armada, incorporou-se também o catalão Mossem João
de Pomar, introdutor do cultivo de cana do açúcar em Loulé.
Um barão alemão e três grandes fidalgos de França não chegaram sozinhos. E dois
cavaleiros de Flandres trouxeram, cada um, vinte homens de armas. Pelo seu
lado, o duque da Borgonha colaborou no jogo da cabra cega com que se ocultou
o destino da expedição. Fretaram-se navios na Biscaia e na Flandres. O
mundo está com as orelhas abertas para mim, confessaria o rei João.
Na largada da frota, a gente de Lisboa juntou-se pelos muros da
alcáçova e pelos lugares altos. Muitos tinham os rostos cheios de água e não
quiseram partir dali até que os montes de Sesimbra tragaram a vista da armada. Em
Lagos frei João Xira revelou o destino e leu a bula de cruzada que
perdoava de antemão os pecados que tencionavam praticar. Aquele que pode contradizer ao
erro e não o contradiz, por esse mesmo consentimento parece que o aprova.
Base de corsários
Edificada numa península à entrada do Mar Mediterrâneo, Ceuta era a sentinela
do Estreito de Gibraltar. Ante ela, no dizer de Zurara, todos os navios mesuravam
as suas velas. Ali desembocava:
- uma das rotas marítimas que ligavam o reino mouro de Granada ao Magrebe;
- a rota terrestre que seguia, pelo norte de África, para Ifriquia, o Egipto, Bagdad, o Oriente rico para lá do Eufrates;
- a sul, a rota do ouro e dos escravos que descia ao Mali. Cidade de comerciantes, marinheiros, lavradores, oficiais mecânicos, não lhe faltava pão, vinho, carnes, frutas; do seu porto, de Tânger, Salé e das cidades marítimas de Granada, saíam piratas mercadores a roubar o Algarve e a Andaluzia.
Ceuta ficava a depender do socorro que lhe viesse do mar». In
António Borges Coelho, Largada das Naus, História de Portugal (1385 – 1500),
Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-21-2464-5.
Cortesia de Caminho/JDACT