«A de Sancho I e a de Pay Soares Taveirós são flores silvestres
de poucas pétalas, despretensiosas, mas cheias de graça e aroma; para mim,
muito mais humanas e belas do que aquelas flores hieráticas de garrido papel
que é costume tratar de Relíquias venerandas. Compreendo que
tais relíquias de altar enganassem os seiscentistas, e mesmo os investigadores
do século XIX, anteriores à publicação do Cancioneiro da Vaticana, do Cancioneiro
Colocci-Brancuti, do Cancioneiro da Ajuda e das Cantigas
de Santa Maria, anteriores sobretudo à edição crítica do Cancioneiro
de D. Dinis! Compreendo que Almeida
Garrett em 1850 e mesmo T.
Braga em 1868 não pudessem nem quisessem perceber a fraude; e que as
razões de J. P. Ribeiro não os
convencessem. Então a nobre ciência da linguagem ainda não se aclimara em
Portugal.
Mas como explicar que ainda hoje os intérpretes da alma lusíada, desdenhem
tanto do saber linguístico? Como explicar que espíritos cultos como Bruno, Afonso Lopes Vieira, Tomás
Borba, não se persuadam de que a língua é base, e é a mais genial,
a mais original e nacional obra de arte que cada nação cria e desenvolve? Tento
explicar o estranho anacronismo pelo que há de saudosismo ostensivo naquelas falsificações. Sim, ostensivo! Os
impostores eram bons patriotas: tanto frei Bernardo de Brito, frei Manoel dos
Santos, frei Rafael de Jesus como Miguel Leitão Andrade, e Manuel Faria Sousa,
apesar da pecha de espião que lhe foi lançada, e apesar das recriminações
contra o uso que fez da língua castelhana. Só falsificavam ad majorem Portugaliolae gloriam,
como já fizera o humanista André de
Resende. Viviam na era funesta em que a união de Espanha e Portugal
lhes havia despertado a ambição de apresentarem documentos históricos e
literários, portugueses, mais arcaicos do que os de Castela. Viviam na era que
revelara a sagazes observadores e espíritos criadores como Cervantes, Lope
de Vega, Calderon, Tirso de Molina, Quevedo, e também a talentos de segunda
ordem como Vélez de Guevara, os contrastes evidentes que há entre a alma
castelhana, épica, e a lírica da nação portuguesa, com a sua afectuosidade, sua
mágoa saudosa e o seu morrer de amor.
Ao ouro fulgente de paixão amorosa que as cartas exalam nem mesmo
fez dano o pechisbeque do estilo:
- aquele corpo de oiro, aquele arcaboiço de feição, aquelas grenhas despelhar e aquela lúzia cara; nem tão pouco a frase rude ós socos bos finca morto o coração! Nem a expressão carulhos me fagam cégo! Nem os demais contrasensos linguísticos do Traga-Mouros e do Rouço da Cava.
Eles encontram lá... O que lá procuram. O claro-escuro especial do amor
à portuguesa. Dentro do amor um elemento terno, um sentido tímido e profundo,
todo apaixonado, mas sem violência; todo sensual, mas sem brutalidade... A
mulher amada... Senhora do culto supremo... Não fantasioso, etéreo,
irrealizável, para além da vida... Mas religiosamente amada sobre a terra, na
sua alma e no seu corpo. Se de ela houver de se apartar, no seu coração tê-la-há
sempre presente pelo poder evocatório e magia lírica da saudade.
Cortesia de costapinheiro e jdact
É um poeta, amador do povo e compreendedor de outros poetas, que viu
tudo isso, e muito mais... Nas cartas apócrifas de Egas Moniz, e tenta por isso estribá-las, interpretá-las...
Comparando-as... Ai de nós! Não com as autênticas poesias dos cancioneiros,
como devia, mas sim com fábulas e novelas, contadas por outros fabulistas,
pseudo-historiadores». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A
Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de
Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção
Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.
Cortesia de Guimarães Editores/JDACT