sábado, 29 de dezembro de 2012

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «Eles encontram lá... O que lá procuram. O claro-escuro especial do amor à portuguesa. Dentro do amor um elemento terno, um sentido tímido e profundo, todo apaixonado, mas sem violência; todo sensual…»

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«A de Sancho I e a de Pay Soares Taveirós são flores silvestres de poucas pétalas, despretensiosas, mas cheias de graça e aroma; para mim, muito mais humanas e belas do que aquelas flores hieráticas de garrido papel que é costume tratar de Relíquias venerandas. Compreendo que tais relíquias de altar enganassem os seiscentistas, e mesmo os investigadores do século XIX, anteriores à publicação do Cancioneiro da Vaticana, do Cancioneiro Colocci-Brancuti, do Cancioneiro da Ajuda e das Cantigas de Santa Maria, anteriores sobretudo à edição crítica do Cancioneiro de D. Dinis! Compreendo que Almeida Garrett em 1850 e mesmo T. Braga em 1868 não pudessem nem quisessem perceber a fraude; e que as razões de J. P. Ribeiro não os convencessem. Então a nobre ciência da linguagem ainda não se aclimara em Portugal.
Mas como explicar que ainda hoje os intérpretes da alma lusíada, desdenhem tanto do saber linguístico? Como explicar que espíritos cultos como Bruno, Afonso Lopes Vieira, Tomás Borba, não se persuadam de que a língua é base, e é a mais genial, a mais original e nacional obra de arte que cada nação cria e desenvolve? Tento explicar o estranho anacronismo pelo que há de saudosismo ostensivo naquelas falsificações. Sim, ostensivo! Os impostores eram bons patriotas: tanto frei Bernardo de Brito, frei Manoel dos Santos, frei Rafael de Jesus como Miguel Leitão Andrade, e Manuel Faria Sousa, apesar da pecha de espião que lhe foi lançada, e apesar das recriminações contra o uso que fez da língua castelhana. Só falsificavam ad majorem Portugaliolae gloriam, como já fizera o humanista André de Resende. Viviam na era funesta em que a união de Espanha e Portugal lhes havia despertado a ambição de apresentarem documentos históricos e literários, portugueses, mais arcaicos do que os de Castela. Viviam na era que revelara a sagazes observadores e espíritos criadores como Cervantes, Lope de Vega, Calderon, Tirso de Molina, Quevedo, e também a talentos de segunda ordem como Vélez de Guevara, os contrastes evidentes que há entre a alma castelhana, épica, e a lírica da nação portuguesa, com a sua afectuosidade, sua mágoa saudosa e o seu morrer de amor.
Ao ouro fulgente de paixão amorosa que as cartas exalam nem mesmo fez dano o pechisbeque do estilo:
  • aquele corpo de oiro, aquele arcaboiço de feição, aquelas grenhas despelhar e aquela lúzia cara; nem tão pouco a frase rude ós socos bos finca morto o coração! Nem a expressão carulhos me fagam cégo! Nem os demais contrasensos linguísticos do Traga-Mouros e do Rouço da Cava.
Eles encontram lá... O que lá procuram. O claro-escuro especial do amor à portuguesa. Dentro do amor um elemento terno, um sentido tímido e profundo, todo apaixonado, mas sem violência; todo sensual, mas sem brutalidade... A mulher amada... Senhora do culto supremo... Não fantasioso, etéreo, irrealizável, para além da vida... Mas religiosamente amada sobre a terra, na sua alma e no seu corpo. Se de ela houver de se apartar, no seu coração tê-la-há sempre presente pelo poder evocatório e magia lírica da saudade.

Cortesia de costapinheiro e jdact

É um poeta, amador do povo e compreendedor de outros poetas, que viu tudo isso, e muito mais... Nas cartas apócrifas de Egas Moniz, e tenta por isso estribá-las, interpretá-las... Comparando-as... Ai de nós! Não com as autênticas poesias dos cancioneiros, como devia, mas sim com fábulas e novelas, contadas por outros fabulistas, pseudo-historiadores». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT