[…] Esse período como um
prelúdio da história de formação de Portugal, ao passo que outros preferem
considerá-lo como uma fase da evolução histórica do reino asturiano e leonês,
procurando-se compreender os diversos ritmos e tendências de evolução da sociedade
alto medieval. Por outro lado, embora alguns historiadores reconhecessem na
arqueologia uma área de estudo cujo desenvolvimento poderia contribuir para um
melhor conhecimento da Alta Idade Média, a verdade é que os estudos
arqueológicos só se vieram a concretizar a partir da década de 80 do século XX,
acompanhando, aliás, a tardia afirmação da Arqueologia Medieval no quadro do
ensino e da investigação arqueológica portuguesa. Os primeiros contributos
significativos, ainda que limitados por um certo empirismo metodológico, devem-se
a Carlos Alberto Ferreira Almeida,
com os seus estudos pioneiros sobre a viação, castelologia e arquitecturas
medievais do Entre Douro-e-Minho. Nesta última matéria defendeu, a pesar da
sublinhada escassez de dados, que “(…) As construções religiosas da época da
Reconquista (…) mostram-nos uma arquitectura de multiplicados e pequenos
espaços, de uma legibilidade interna muito limitada, isto é, com uma ordenação
bastante estanque. E a silhueta exterior destes edifícios assim o reflecte.
Esta é marcada por diferentes volumes, notoriamente, escalonados até ao centro
ou até à torre-cruzeira, quando esta existe. (…) Os bons edifícios da
Reconquista, na área portuguesa, estão entre a arte cordovesa, emiral e
califal, e a arquitectura asturiana, e ao lado das tão moçárabes realizações
leonesas. Elas mostram características próprias, expressando esse tempo e essa cultura
(…)”.
Mário Jorge Barroca aprofundou as linhas de investigação abertas
por Ferreira de Almeida,
creditando-se-lhe os primeiros inventários arqueológicos analíticos das
necrópoles, de elementos arquitectónicos avulso e da epigrafia altomedievais do
entre Douro-e-Minho, os quais lhe permitiram reafirmar os séculos IX-XI como um
período socialmente dinâmico, caracterizando-se a “arte portuguesa pré-nacional”
por revelar “(…) uma estética original, na mayoría dos casos afastada dos cânones
asturianos ou moçárabes puros, mas não deixando de ser influenciada por estes e
pelos que se ia fazendo na área galega. São sobretodo notórias as referências
asturianas e compostelanas, filtradas e assimiladas num gosto próprio. (…)”.
Nas décadas finais da
última centúria, iniciaram-se também estudos de produções cerâmicas
provenientes de contextos arqueológicos com estratigrafia bem estabelecida,
proporcionada pelas escavações no casco urbano da cidade de Braga e no sítio de
Dume. Alexandra Gaspar, a arqueóloga que melhor estudou esta matéria, registou
para este período a predominância das produções locais e uma significativa
redução de fabricos importados, que não se imitam, a par de uma menor variedade
de formas, com predomínio das formas fechadas, acentuando-se nas cronologias
mais recentes as cozeduras em ambiente redutor.
Mas é com Manuel Luís Real que, de modo
sistemático, o conhecimento deste período histórico se amplia e renova, graças
aos seus persistentes estudos de história da arte e de arqueologia
altomedievais, oferecendo-nos nos últimos anos as mais informadas, estimulantes
e historicamente contextualizadas sínteses sobre a evolução da arquitectura no
actual território português entre os séculos VI e XI. Sustentado por uma
abordagem metodologicamente actualizada, em que releva a manipulação de dados
primários recolhidos nas múltiplas escavações arqueológicas que, directa ou indirectamente,
acompanhou, a par da recolha de paralelos no actual território português, no
sul peninsular e na bacia mediterrânica, Manuel
Real cruza dados de natureza diversa (arqueológicos, documentais,
toponímicos, estilísticos), que lhe permitem propor uma interpretação coerente
das características essenciais da arte e da cultura dos séculos IX-XI. Porque
elucidativo, permita-se-nos transcrever aqui o resumo do seu contributo
apresentado no terceiro simpósio internacional “Visigodos y Omeyas”:
- “As esculturas do período suevo-visigodo evidenciam uma natural continuidade em relação ao período romano. No entanto, demonstram também tendências para a dissolução dos modelos nos quais se inspiram. Com a Reconquista emergem novas formas artísticas, onde sobressaem as influências galaico-asturianas, mais do que leonesas. A arte erudita do “grupo portucalense” irá caracterizar-se por um progressivo retorno ao classicismo, matizado pela introdução de formas de origem moçárabe. Neste processo, vão ter um papel preponderante as cortes condais de Viseu e Coimbra. A importação, para o Entre Douro e Minho, de peças de escultura em calcário, ter-se-á seguido à nomeação de Hermenegildo Gonçalves e Mumadona para o governo do condado de Portucale. A íntima relação que estes mantinham com a corte de Ramiro II, de Leon, explicará ainda algumas afinidades entre o “grupo portucalense” e certas manifestações artísticas, dispersas pela Galiza, Astúrias e, eventualmente, o baixo Leon”.
Portanto, não só se deve
abandonar a ideia feita que após 711 se deixou de construir edifícios, como se deve
reconhecer a existência de renovação arquitectónica, com manifestação de
influências diversas, que se entrecruzam, inclusivamente oriundas do
mediterrâneo oriental. Essa renovação está expressa nas diversas tendências
regionais que se detectam nos elementos arquitectónicos atribuídos a este
período, distinguindo-se uma arquitectura “moçárabe” com origem em centros
urbanos meridionais, como Mérida, Málaga, Lisboa ou Coimbra, uma arquitectura
asturiana desenvolvida a partir da capital das Astúrias, Oviedo, e uma
arquitectura condal galaico-portucalense, que emerge em torno dos principais
núcleos de povoamento do Noroeste, isolando-se no entre Douro-e-Minho o foco de
Braga, num eixo que se estende de Guimarães a Ponte de Lima». In Luís Fontes, O Norte de
Portugal ente os séculos VIII e X. Balanço e Perspectivas de Investigação, Unidade
de Arqueologia da Universidade do Minho, Braga, 2010.
Cortesia da U. do Minho/JDACT